quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O BODE CHEIROSO





O BODE CHEIROSO





Amigos generosos me pedem para escrever mais histórias acontecidas no sertão nordestino, onde eu nasci e vivi durante dez anos.
Alguns deles me aconselham a valer-me da ficção para suprir a falta de “casos” verdadeiros. Entretanto, considerando-me um discípulo do realista Jack London, a isso me recuso. Deixo a “invenção” para outros escritores, especialmente os romancistas.
Os meus contos (publicados e mais outros já prontos que entrarão na segunda edição do meu livro “Memórias do Sertão”) são contos verdadeiros, vestidos do melhor estilo que permite o meu talento e o meu espírito.
Já relatei ao que me parece, todos os acontecimentos dignos de revelação e que estavam adormecidos sob a pátina do tempo, dentro do meu cérebro.
Contudo, vez por outra, surge na tela da minha mente uma história que parecia esquecida.
É o caso deste conto, cujo fato veio à tona de maneira completamente imprevista.
Eu contava com uns oito anos de idade.
O meu avô, Estandislau Carlos de Almeida, mantinha na sua fazenda Boqueirão um importante criatório de gado caprino. Do leite das cabras, minha avó produzia os mais saborosos queijos da região.
Lembro-me, agora, embora já decorridos quase setenta anos, que uma cabra de cor preta e listras brancas pariu um cabritinho cuja cor, se não me engano, era cinzenta.
O cabritinho nasceu “parrudo” e obedecendo às misteriosas leis da Natureza, foi crescendo, crescendo.
Ao atingir a idade adulta, mostrava na cabeça robusta chifres poderosos que teriam servido de arma à Sansão. O corpo era muito peludo e lhe nasceu no queixo um cavanhaque de fazer inveja a qualquer conde francês.
Ele tornou-se, desde jovem, “líder” do rebanho. Todos lhe obedeciam como se fosse rei, e, semelhante a um rei mouro, possuía o bode um harém, do qual nenhum outro animal do seu sexo poderia aproximar-se.
Eu mesmo o respeitava e dele mantinha segura distância, pois ignorava suas intenções com relação a crianças.
O enorme e raro animal parecia, visto de longe, um rinoceronte; exalava um cheiro forte, para não dizer um horrível mau cheiro.
Por causa disso, recebeu o apelido de Bode cheiroso, dado não sei por quem.
O tempo escoava preguiçoso, sem alterar a rotina do criatório, salvo quando nasciam novos cabritinhos. Cabras morriam ora de velhice, ora mordidas por cobras, e, raras vezes, pela gula de onça suçuarana, que surgia repentinamente nas terras da fazenda.
Os urubus, voando em círculos, indicavam-nos os lugares das carniças.
Eu morria de medo quando via no chão arenoso rastros de onças. Carregava na cintura um facão comprido na tola crença de que aquela arma evitaria que a onça me fizesse de seu repasto. O meu medo era tão trágico como o do herói Heitor frente à lança de bronze do temível Aquiles.
Mas voltemos à história do nosso poderoso bode que eu supunha pudesse até vencer em luta a onça, visando à proteção do seu rebanho.
Quis o imponderável que, numa certa manhã de sol brilhante, eu tivesse a oportunidade de assistir a um espetáculo digno de um circo romano, ao tempo de Nero, onde homens e feras se enfrentavam.
Um grande touro da raça Zebu pastava no campo, junto aos animais caprinos.
Por razão que desconheço, eu passava por aquela parte da fazenda, quando avistei o touro. Meu desconhecido, e de cujo gênio não sabia.
Parei junto a uma árvore frondosa, talvez um umbuzeiro, e permaneci ali apreciando o panorama.
De repente, vi o bode cheiroso de frente para touro, demonstrando o desejo de uma refrega.
O touro comia o seu capim despreocupado. Certamente sentiu o cheiro do bode, quando levantou a cabeça, pressentiu a presença do inimigo.
Escondido atrás da árvore, eu aguardava os próximos acontecimentos. Julgava, porém, que o Cheiroso se acovardasse e voltasse a procurar a segurança do rebanho.
Isso, porém, não aconteceu.
O bode, irritado com a presença do boi em sua propriedade, partiu berrando em direção ao inimigo, de peso muitas vezes superior ao seu.
O touro correu também e, ao aproximar-se do bode, baixou a cabeça para atingir o adversário, porém o Cheiroso deu-lhe uma cabeçada com seus chifres poderosos.
O touro estatelou-se sobre a verde relva e morreu logo depois.
O bode, orgulhoso da vitória, voltava ao rebanho com espantosa calma.
Do meu esconderijo, eu tremia como vara verde tangida pelo vento.
Com o coração batendo forte, corri para casa e avisei ao meu avô do ocorrido. De princípio, ele não acreditou na minha estranha história, mas reuniu alguns empregados e partiu para aquela arena onde dois gigantes de raças diferentes haviam travado uma batalha.
Mudei-me logo para a cidade e desconheço o destino do bode Cheiroso, do qual me recordo com emoção.


Ilhéus, 27/08/2001.

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