O BODE CHEIROSO
Amigos generosos me pedem para escrever mais histórias
acontecidas no sertão nordestino, onde eu nasci e vivi durante dez anos.
Alguns deles me aconselham a valer-me da ficção para
suprir a falta de “casos” verdadeiros. Entretanto, considerando-me um discípulo
do realista Jack London, a isso me recuso. Deixo a “invenção” para outros
escritores, especialmente os romancistas.
Os meus contos (publicados e mais outros já prontos
que entrarão na segunda edição do meu livro “Memórias do Sertão”) são contos
verdadeiros, vestidos do melhor estilo que permite o meu talento e o meu
espírito.
Já relatei ao que me parece, todos os acontecimentos
dignos de revelação e que estavam adormecidos sob a pátina do tempo, dentro do
meu cérebro.
Contudo, vez por outra, surge na tela da minha mente
uma história que parecia esquecida.
É o caso deste conto, cujo fato veio à tona de maneira
completamente imprevista.
Eu contava com uns oito anos de idade.
O meu avô, Estandislau Carlos de Almeida, mantinha na
sua fazenda Boqueirão um importante criatório de gado caprino. Do leite das
cabras, minha avó produzia os mais saborosos queijos da região.
Lembro-me, agora, embora já decorridos quase setenta
anos, que uma cabra de cor preta e listras brancas pariu um cabritinho cuja
cor, se não me engano, era cinzenta.
O cabritinho nasceu “parrudo” e obedecendo às
misteriosas leis da Natureza, foi crescendo, crescendo.
Ao atingir a idade adulta, mostrava na cabeça robusta
chifres poderosos que teriam servido de arma à Sansão. O corpo era muito peludo
e lhe nasceu no queixo um cavanhaque de fazer inveja a qualquer conde francês.
Ele tornou-se, desde jovem, “líder” do rebanho. Todos
lhe obedeciam como se fosse rei, e, semelhante a um rei mouro, possuía o bode
um harém, do qual nenhum outro animal do seu sexo poderia aproximar-se.
Eu mesmo o respeitava e dele mantinha segura
distância, pois ignorava suas intenções com relação a crianças.
O enorme e raro animal parecia, visto de longe, um
rinoceronte; exalava um cheiro forte, para não dizer um horrível mau cheiro.
Por causa disso, recebeu o apelido de Bode cheiroso,
dado não sei por quem.
O tempo escoava preguiçoso, sem alterar a rotina do
criatório, salvo quando nasciam novos cabritinhos. Cabras morriam ora de
velhice, ora mordidas por cobras, e, raras vezes, pela gula de onça suçuarana,
que surgia repentinamente nas terras da fazenda.
Os urubus, voando em círculos, indicavam-nos os
lugares das carniças.
Eu morria de medo quando via no chão arenoso rastros
de onças. Carregava na cintura um facão comprido na tola crença de que aquela
arma evitaria que a onça me fizesse de seu repasto. O meu medo era tão trágico
como o do herói Heitor frente à lança de bronze do temível Aquiles.
Mas voltemos à história do nosso poderoso bode que eu
supunha pudesse até vencer em luta a onça, visando à proteção do seu rebanho.
Quis o imponderável que, numa certa manhã de sol
brilhante, eu tivesse a oportunidade de assistir a um espetáculo digno de um
circo romano, ao tempo de Nero, onde homens e feras se enfrentavam.
Um grande touro da raça Zebu pastava no campo, junto
aos animais caprinos.
Por razão que desconheço, eu passava por aquela parte
da fazenda, quando avistei o touro. Meu desconhecido, e de cujo gênio não
sabia.
Parei junto a uma árvore frondosa, talvez um
umbuzeiro, e permaneci ali apreciando o panorama.
De repente, vi o bode cheiroso de frente para touro,
demonstrando o desejo de uma refrega.
O touro comia o seu capim despreocupado. Certamente
sentiu o cheiro do bode, quando levantou a cabeça, pressentiu a presença do
inimigo.
Escondido atrás da árvore, eu aguardava os próximos
acontecimentos. Julgava, porém, que o Cheiroso se acovardasse e voltasse a procurar
a segurança do rebanho.
Isso, porém, não aconteceu.
O bode, irritado com a presença do boi em sua
propriedade, partiu berrando em direção ao inimigo, de peso muitas vezes
superior ao seu.
O touro correu também e, ao aproximar-se do bode,
baixou a cabeça para atingir o adversário, porém o Cheiroso deu-lhe uma cabeçada
com seus chifres poderosos.
O touro estatelou-se sobre a verde relva e morreu logo
depois.
O bode, orgulhoso da vitória, voltava ao rebanho com
espantosa calma.
Do meu esconderijo, eu tremia como vara verde tangida
pelo vento.
Com o coração batendo forte, corri para casa e avisei
ao meu avô do ocorrido. De princípio, ele não acreditou na minha estranha
história, mas reuniu alguns empregados e partiu para aquela arena onde dois
gigantes de raças diferentes haviam travado uma batalha.
Mudei-me logo para a cidade e desconheço o destino do
bode Cheiroso, do qual me recordo com emoção.
Ilhéus, 27/08/2001.
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