quarta-feira, 16 de agosto de 2017

A ARANHA CARANGUEJEIRA



A ARANHA CARANGUEJEIRA


O Sol começava a esconder-se, deixando no seu trajeto uma esteira de faíscas douradas que embelezavam o céu. O crepúsculo que se seguia mostrava uma festa de luzes no firmamento coalhado de estrelas.

Eu cochilava numa rede, descansando da azáfama do dia.

Quando o sono estava prestes a me dominar, fui despertado por um estridente cacarejar de galinhas que revelava estarem elas assustadas. Curioso para saber o que estava ocorrendo, levantei-me e me dirigi ao local do bafafá. De início pensei que fosse uma cobra grande de passagem pelo terreiro em hora tão imprópria, ou talvez uma raposa atrevida atacada de fome.

Mas não era nada disso. Tratava-se de uma enorme aranha caranguejeira marrom, asquerosa, que se destacava em tamanho e ferocidade dos demais aracnídeos que habitavam a nossa fazenda em grande número, como se também fossem seus proprietários.

Encontrávamos, com frequência, aranhas, escorpiões e lacraias dentro de casa, entre as roupas de vestir e de cama, e, principalmente no meio das achas de lenha que alimentavam o faminto fogão da minha avó.

Não tínhamos qualquer antídoto contra o veneno desses animais peçonhentos e o socorro médico mais próximo distava uns cinquenta quilômetros em lombo de burro.
Muitas vidas eram salvas com mezinhas, que consistiam em embeber um pano com fumo de rolo dissolvido em água quente e aplicar sobre a picada, sem demora.

Mas voltemos ao objeto deste conto.

Aproximei-me do local do tumulto e observei que uma galinha preta, muito gorda, comandava um batalhão de outras galinhas que ciscavam e cacarejavam como loucas, acompanhando, em formação de ataque, uma caranguejeira. Esta, movimentava as suas numerosas pernas, caminhando sem medo e sem pressa. De vez em quando, interrompia a marcha e olhava para a retaguarda, parecendo começar a preocupar-se com aquele pequeno exército de inimigas que se achavam no seu encalço. É interessante mencionar que os galos olhavam, do terreiro, aquela perseguição, sem demonstrarem intenção de participar.

As galinhas, graças à experiência de gerações, respeitavam a inimiga; seguiam-na de perto, mas com precaução.

De súbito, a galinha preta que liderava aquela força-tarefa, encheu-se de coragem e avançou rápida, aplicando uma bicada violenta em uma das pernas da aranha que estremeceu com o golpe. Dava a impressão que sofria em silêncio. Frente à ameaça de novas bicadas, a aranha voltou-se rápida e fez menção de atacar, em revide, dando pequenos botes. A galinha pulava para trás e cacarejava freneticamente, incitando as outras a ajudá-la na agressão.

A aranha retomou sua caminhada, capengando, e o pequeno comando avançou corajosamente, conseguindo atingir a adversária em diversas partes do seu corpo asqueroso. A aranha, sentindo os golpes, arriou-se e ficou momentaneamente imobilizada. Contudo, não se rendeu logo, apesar dos ferimentos recebidos. Decidiu, corajosamente, lutar pela vida. Embora demonstrando dificuldade, ainda conseguia dar pequenos botes destinados a amedrontar o batalhão que obstinadamente a perseguia.

Por fim, o seu aguçado instinto alertou-a que a luta era desigual e decidiu, com muito esforço, fugir em direção a um capinzal que ficava próximo, mas era tarde. As suas forças começavam a exaurir-se; arrastava-se com dificuldade como ave de asa quebrada.

Beneficiada pela escuridão que providencialmente chegava em seu auxílio, a galinha em comando  resolveu liquidar logo com a inimiga e deu-lhe uma bicada decisiva na cabeça, no que foi auxiliada pelas suas companheiras. Os últimos golpes foram fatais. A aranha, desesperada, sucumbiu.

Como prêmio à vitória naquela arena, todas as galinhas participaram do banquete que se seguiu.

Esta foi a primeira e última vez que eu fui testemunha de um combate tão singular.

Quando as trevas da noite ocuparam totalmente o espaço liberado pelo Sol, retornei à minha rede que continuava armada no alpendre, no desejo de continuar a modorra bruscamente interrompida.

A noite sem luar facilitava a visão do firmamento, onde se mostravam, como se estivessem em exposição, milhões de estrelas a cintilar, dando a impressão de que estavam suspensas no espaço, seguras por desconhecidas leis da gravitação.

Eu ficava embevecido com a beleza e o mistério da estrela-d’alva, cujo brilho ofuscava e causava inveja às suas irmãs mais próximas.

Morfeu me embalava, induzindo-me ao sono profundo. Embora sentisse o peso crescente das pálpebras, eu procurava, com esforço, manter os olhos semi-abertos, para não perder a profunda emoção de contemplar aquela festa iluminada no espaço.

Como era belo o Cruzeiro do Sul, uma constelação tão familiar a nós, brasileiros! As estrelas piscavam compassadamente, espalhadas na via-láctea, sem aparente critério de arrumação. Tinha-se a impressão de que muitas delas estavam dispostas em vizinhança; outras brilhavam solitárias, a distâncias inimagináveis para a mente humana.

Na minha tenra idade, eu ficava embevecido com o fantástico espetáculo que contemplava, e muito triste pela incapacidade de compreender o mistério da Criação.

Na aula de catecismo da escola onde eu estudava, a professora ensinava que o Universo e tudo o que ele contém havia sido obra de um ser chamado Deus, também conhecido por outros nomes, conforme cada religião.

Então o meu espírito curioso se afligia ao recordar a cena da luta entre duas espécies de animais tão diferentes, a que acabara de assistir. A galinha, que alimentava o homem com a sua carne e ovos, e a aranha peçonhenta. E pensava ainda: como poderia a mesma Entidade Divina criar o coelho, a pomba, o beija-flor e muitas outras espécies de animais inofensivos, e criar também, por exemplo, cobras venenosas e aranhas caranguejeiras.

Um vendaval de dúvidas assolava então o meu espírito, sem possibilidade de amainar. Torturava a mente exigindo dela um esclarecimento lógico. Finalmente, aflorou no meu raciocínio a impressão de que o Diabo andou dando a Deus uma mãozinha nos trabalhos da criação do Universo.

Tais indagações filosóficas me dificultavam o sono.

E aquela cena de combate de vida e morte entre espécies tão diferentes e irracionais voltava a martelar a minha cabeça. E o meu sofrido raciocínio, já fatigado pelas recentes emoções, sofrendo as ameaças da lógica, ainda tinha ânimo para examinar e conjeturar sobre nós, que nos julgamos racionais, que pensamos, que sabemos diferenciar o bem do mal, que somos tidos como filhos do mesmo Deus, e, entretanto, nos matamos sem piedade, por não sabermos eliminar as paixões que dominam o nosso “eu”. E, surpreso, concluí que o Homosapiens criado a imagem e semelhança do seu Criador, segundo afirmam as escrituras, não passa de um animal como os outros. A principal diferença é a sua forma física. A maldade, contudo, iguala os dois. É evidente que a humanidade compreende homens de várias naturezas: existem os bons, os maus, os sábios, os loucos etc.

E ainda, com meu espírito atribulado pelas interrogações que o meu inconsciente fazia ao consciente, dirigi o pensamento para o centro do universo, em direção ao ponto onde julgava residir o nosso Deus, e o inquiri por que os homens, aqui na Terra, gastam suas energias físicas e intelectuais na invenção e produção de armamentos, na formação de manutenção de exércitos que, vez por outra, engajam-se em terríveis conflitos e matanças, destruindo-se mutuamente, transmitindo dor e sofrimento a sucessivas gerações. Esses recursos, desviados para a maldade, poderiam ser suficientes para alimentar todos os seres humanos, se a isso fossem destinados.

Fixando o olhar na abóboda celeste, aguardei, em vão, um sinal de resposta à minha indagação mental. Ignoro se a mensagem que conduzia a pergunta angustiada teria sido percebida pelo Onisciente.

Adormeci, finalmente, embalado pelo silêncio.


                                 Edson Valadares 

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