A ARANHA CARANGUEJEIRA
O Sol começava a
esconder-se, deixando no seu trajeto uma esteira de faíscas douradas que
embelezavam o céu. O crepúsculo que se seguia mostrava uma festa de luzes no
firmamento coalhado de estrelas.
Eu cochilava numa rede, descansando
da azáfama do dia.
Quando o sono estava prestes
a me dominar, fui despertado por um estridente cacarejar de galinhas que
revelava estarem elas assustadas. Curioso para saber o que estava ocorrendo,
levantei-me e me dirigi ao local do bafafá. De início pensei que fosse uma cobra
grande de passagem pelo terreiro em hora tão imprópria, ou talvez uma raposa
atrevida atacada de fome.
Mas não era nada disso.
Tratava-se de uma enorme aranha caranguejeira marrom, asquerosa, que se
destacava em tamanho e ferocidade dos demais aracnídeos que habitavam a nossa
fazenda em grande número, como se também fossem seus proprietários.
Encontrávamos, com frequência,
aranhas, escorpiões e lacraias dentro de casa, entre as roupas de vestir e de
cama, e, principalmente no meio das achas de lenha que alimentavam o faminto
fogão da minha avó.
Não tínhamos qualquer
antídoto contra o veneno desses animais peçonhentos e o socorro médico mais
próximo distava uns cinquenta quilômetros em lombo de burro.
Muitas vidas eram salvas com
mezinhas, que consistiam em embeber um pano com fumo de rolo dissolvido em água
quente e aplicar sobre a picada, sem demora.
Mas voltemos ao objeto deste
conto.
Aproximei-me do local do
tumulto e observei que uma galinha preta, muito gorda, comandava um batalhão de
outras galinhas que ciscavam e cacarejavam como loucas, acompanhando, em
formação de ataque, uma caranguejeira. Esta, movimentava as suas numerosas
pernas, caminhando sem medo e sem pressa. De vez em quando, interrompia a
marcha e olhava para a retaguarda, parecendo começar a preocupar-se com aquele
pequeno exército de inimigas que se achavam no seu encalço. É interessante
mencionar que os galos olhavam, do terreiro, aquela perseguição, sem
demonstrarem intenção de participar.
As galinhas, graças à
experiência de gerações, respeitavam a inimiga; seguiam-na de perto, mas com
precaução.
De súbito, a galinha preta
que liderava aquela força-tarefa, encheu-se de coragem e avançou rápida,
aplicando uma bicada violenta em uma das pernas da aranha que estremeceu com o
golpe. Dava a impressão que sofria em silêncio. Frente à ameaça de novas
bicadas, a aranha voltou-se rápida e fez menção de atacar, em revide, dando
pequenos botes. A galinha pulava para trás e cacarejava freneticamente,
incitando as outras a ajudá-la na agressão.
A aranha retomou sua
caminhada, capengando, e o pequeno comando avançou corajosamente, conseguindo
atingir a adversária em diversas partes do seu corpo asqueroso. A aranha,
sentindo os golpes, arriou-se e ficou momentaneamente imobilizada. Contudo, não
se rendeu logo, apesar dos ferimentos recebidos. Decidiu, corajosamente, lutar
pela vida. Embora demonstrando dificuldade, ainda conseguia dar pequenos botes
destinados a amedrontar o batalhão que obstinadamente a perseguia.
Por fim, o seu aguçado
instinto alertou-a que a luta era desigual e decidiu, com muito esforço, fugir
em direção a um capinzal que ficava próximo, mas era tarde. As suas forças
começavam a exaurir-se; arrastava-se com dificuldade como ave de asa quebrada.
Beneficiada pela escuridão
que providencialmente chegava em seu auxílio, a galinha em comando resolveu liquidar logo com a inimiga e
deu-lhe uma bicada decisiva na cabeça, no que foi auxiliada pelas suas
companheiras. Os últimos golpes foram fatais. A aranha, desesperada, sucumbiu.
Como prêmio à vitória
naquela arena, todas as galinhas participaram do banquete que se seguiu.
Esta foi a primeira e última
vez que eu fui testemunha de um combate tão singular.
Quando as trevas da noite
ocuparam totalmente o espaço liberado pelo Sol, retornei à minha rede que
continuava armada no alpendre, no desejo de continuar a modorra bruscamente
interrompida.
A noite sem luar facilitava
a visão do firmamento, onde se mostravam, como se estivessem em exposição,
milhões de estrelas a cintilar, dando a impressão de que estavam suspensas no
espaço, seguras por desconhecidas leis da gravitação.
Eu ficava embevecido com a
beleza e o mistério da estrela-d’alva, cujo brilho ofuscava e causava inveja às
suas irmãs mais próximas.
Morfeu me embalava,
induzindo-me ao sono profundo. Embora sentisse o peso crescente das pálpebras,
eu procurava, com esforço, manter os olhos semi-abertos, para não perder a
profunda emoção de contemplar aquela festa iluminada no espaço.
Como era belo o Cruzeiro do
Sul, uma constelação tão familiar a nós, brasileiros! As estrelas piscavam
compassadamente, espalhadas na via-láctea, sem aparente critério de arrumação.
Tinha-se a impressão de que muitas delas estavam dispostas em vizinhança;
outras brilhavam solitárias, a distâncias inimagináveis para a mente humana.
Na minha tenra idade, eu
ficava embevecido com o fantástico espetáculo que contemplava, e muito triste
pela incapacidade de compreender o mistério da Criação.
Na aula de catecismo da
escola onde eu estudava, a professora ensinava que o Universo e tudo o que ele
contém havia sido obra de um ser chamado Deus, também conhecido por outros
nomes, conforme cada religião.
Então o meu espírito curioso
se afligia ao recordar a cena da luta entre duas espécies de animais tão
diferentes, a que acabara de assistir. A galinha, que alimentava o homem com a
sua carne e ovos, e a aranha peçonhenta. E pensava ainda: como poderia a mesma
Entidade Divina criar o coelho, a pomba, o beija-flor e muitas outras espécies
de animais inofensivos, e criar também, por exemplo, cobras venenosas e aranhas
caranguejeiras.
Um vendaval de dúvidas
assolava então o meu espírito, sem possibilidade de amainar. Torturava a mente
exigindo dela um esclarecimento lógico. Finalmente, aflorou no meu raciocínio a
impressão de que o Diabo andou dando a Deus uma mãozinha nos trabalhos da
criação do Universo.
Tais indagações filosóficas
me dificultavam o sono.
E aquela cena de combate de
vida e morte entre espécies tão diferentes e irracionais voltava a martelar a
minha cabeça. E o meu sofrido raciocínio, já fatigado pelas recentes emoções,
sofrendo as ameaças da lógica, ainda tinha ânimo para examinar e conjeturar
sobre nós, que nos julgamos racionais, que pensamos, que sabemos diferenciar o
bem do mal, que somos tidos como filhos do mesmo Deus, e, entretanto, nos
matamos sem piedade, por não sabermos eliminar as paixões que dominam o nosso
“eu”. E, surpreso, concluí que o Homosapiens criado a imagem e semelhança do
seu Criador, segundo afirmam as escrituras, não passa de um animal como os
outros. A principal diferença é a sua forma física. A maldade, contudo, iguala
os dois. É evidente que a humanidade compreende homens de várias naturezas:
existem os bons, os maus, os sábios, os loucos etc.
E ainda, com meu espírito
atribulado pelas interrogações que o meu inconsciente fazia ao consciente,
dirigi o pensamento para o centro do universo, em direção ao ponto onde julgava
residir o nosso Deus, e o inquiri por que os homens, aqui na Terra, gastam suas
energias físicas e intelectuais na invenção e produção de armamentos, na
formação de manutenção de exércitos que, vez por outra, engajam-se em terríveis
conflitos e matanças, destruindo-se mutuamente, transmitindo dor e sofrimento a
sucessivas gerações. Esses recursos, desviados para a maldade, poderiam ser
suficientes para alimentar todos os seres humanos, se a isso fossem destinados.
Fixando o olhar na abóboda
celeste, aguardei, em vão, um sinal de resposta à minha indagação mental.
Ignoro se a mensagem que conduzia a pergunta angustiada teria sido percebida
pelo Onisciente.
Adormeci, finalmente,
embalado pelo silêncio.
Edson Valadares
Nenhum comentário:
Postar um comentário