AS
BOIADAS
Qualquer estudo sobre a vida das
populações sertanejas – seus usos e costumes – será incompleto se não se
referir às “boiadas”, hoje em dia praticamente desaparecidas pela ditadura do
progresso, que introduziu o uso de caminhões e de carretas apropriados ao
transporte de gado.
Na primeira metade deste século e ainda no
tempo presente em regiões de difícil acesso, contudo, as boiadas eram
acontecimentos extraordinários nas regiões do sertão. Elas, pela movimentação
de animais e homens com suas vestimentas de couro, os cavalos e os cachorros
boieiros, lembrando uma fantástica ópera a céu aberto, tendo por fundo musical o
“aboio” dos vaqueiros. Uma grande boiada avançando pelos caminhos como a
corrente de um rio, representava uma epopeia digna de homens valentes.
Para maior compreensão do assunto, é
mister explicarmos alguns termos que surgirão no decorrer da história, e que
são:
Boiada – manada de bois.
Boiadeiro – tocador de boiadas.
Manada – rebanho de gado.
Rebanho – porção de gados.
Vaqueiro – condutor de gado vacum.
Tanger – Tocar, guiar, dirigir rebanhos.
Chuço – Ferrão, vara guarnecida de ponta
de ferro.
Aboio – Canto triste com que os vaqueiros
guiam as boiadas
Podemos classificar as boiadas em quatro
tipos diferentes:
1.
As
que os fazendeiros organizam para a transferência de gado entre fazendas;
2.
As
que os negociantes compravam ou vendiam reses;
3.
As
que reuniam os animais para dessedentar, no verão, quando secavam as fontes de
água.
4.
As
que conduziam gado cevado para os matadouros, a fim de fornecer carne aos
consumidores.
As manadas eram de tamanho pequeno, médio
e grande. Neste último caso poderia compor-se de centenas de reses tangidas por
dezenas de vaqueiros, montados em soberbos cavalos ou a pé, seguidos de muitos
cachorros. Os grupos grandes eram subdivididos, isto é, eram repartidos em
grupos menores, para evitar estouros, imitando, assim, as formações dos exércitos.
As boiadas, comandadas por gente rude, mas
experiente, eram inteligentemente organizadas. À sua frente seguia um vaqueiro
vestido com a sua roupa de couro, típica do sertão, montando, geralmente, um
cavalo alto, para ser visto por toda a manada. Portava uma vara comprida com
ponta de ferro (chuço), para refrear animais violentos que atacassem o cavalo
ou o cavaleiro. Ao seu lado viajava sempre um enorme cão treinado, que tinha a
missão de dominar e fazer retornar à manada os bichos desgarrados, que por
acaso se adiantassem ao guia.
Um outro vaqueiro chamado de “batedor” ia
muito à frente da boiada, imitando o procedimento dos indígenas
norte-americanos em suas caçadas ou na descoberta da localização de inimigos,
quer fossem índios ou soldados. A sua função principal era a de ficar de
atalaia e detectar outras boiadas que viessem em sentido contrário. A
possibilidade de duas boiadas se encontrarem e se misturarem, fazia tremer de
pavor os vaqueiros mais hábeis e mais valentes. A confusão que se transformava
quando isso acontecia era superior àquela da Torre de Babel, de que nos fala a
Bíblia Sagrada.
Os animais mansos seguiam à frente das
manadas; as crias andavam ao lado de suas mães, de quem raramente se apartavam,
emitindo, frequentemente, pequenos urros. Os animais mais ariscos eram postos
no centro do rebanho. E na retaguarda viajavam os mais velhos ou de menor
resistência.
Na sua maior parte, os caminhos eram
estreitos. Por essa razão e ainda pelo cansaço, pelo calor e pelas nuvens de
poeira adusta levantada pelas centenas de cascos em movimento, entumecendo os
olhos e prejudicando a respiração dos animais, eles ficavam impacientes,
nervosos e provocavam lutas entre si, prejudicando a marcha.
Nos animais mais violentos ou perigosos
eram colocadas cangas de madeira, a fim de evitar rebelião.
Vaqueiros experientes, especialmente
contratados para esse ofício, viajavam ao lado de manadas e outros marchavam à
retaguarda, auxiliados pelos valiosos cães.
Quando animais tentavam escapar da manada,
em busca de liberdade, sozinhos ou em grupo, os cachorros percebiam
imediatamente a manobra e os faziam voltar aos seus lugares.
No seu trajeto, as boiadas costumavam
atravessar povoados e até mesmo pequenas cidades, causando confusão e pânico
aos seus habitantes. As pessoas corriam para as suas casas e fechavam portas e
janelas. Diversos animais perdiam o rumo e atônitos invadiam os quintais,
destruindo as hortas, assustando as galinhas e os moradores. Nessas ocasiões,
os vaqueiros, seus cavalos e seus cães lutavam com denodo e heroísmo para
dominarem os fugitivos, lembrando a própria intrepidez dos gregos ao
enfrentarem os exércitos persas, em inferioridade, na célebre batalha das
TERMÓPILAS.
Os homens alimentavam-se de farinha de
mandioca, carne seca e rapadura e bebiam água de barris transportados por
jumentos. Nos tempos de seca, os animais sofriam muita sede e fome e até
morriam.
Havia manadas que percorriam grandes
distâncias, inclusive de um Estado para outro. Durante o verão, evitava-se
viajar com o Sol a pino ou nas tardes de canícula muito forte.
A marcha noturna realizava-se, apenas, nas
noites iluminadas pela Lua. Quando chegava a escuridão, o rebanho era reunido
em círculo, recebia alguma alimentação e todos dormiam e sonhavam protegidos
pela diáfana luz das estrelas suspensas no céu.
Quando os viajantes tinham a oportunidade
de aproximar-se de alguma fazenda, aí pernoitavam e descansavam, pagando uma
remuneração pelo apoio recebido.
Após terminada a difícil e ofegante viagem
que fazia lembrar aquela outra, muito famosa, contida no livro “As vinhas da
ira”, os homens gozavam curto período de férias.
Homens e animais tomavam banho,
alimentavam-se, descansavam e sentiam-se felizes com o fim da jornada.
Organizavam-se festas comemorativas e os
instrumentos musicais rudimentares espalhavam sons maravilhosos que faziam
evoluções sobre as amplas planícies do sertão. As pessoas banqueteavam-se,
dançavam, conversavam, sorriam e gargalhavam. Os namoros iniciavam-se e muitos
casamentos realizavam-se.
Logo depois a vida dura do sertanejo
recomeçava. Era sua vida, o seu destino.
E, finalmente, não se pode deixar de fazer
menção especial ao fantástico “aboio” dos vaqueiros. O aboio significava um
canto triste, langoroso, com que os vaqueiros guiavam e acalmavam o gado.
O aboio do meu avô era forte, longo e
triste como marcha fúnebre e tão pesaroso quanto o apito rouco emitido por
navio de passageiros ao despedir-se em um porto. Nas tonalidades de certos
trechos a garganta do meu avô dava a impressão de expelir trovões.
Quando um grande grupo de vaqueiros
“aboiava” ao mesmo tempo, em uníssono, lembrava o canto das sereias que
tentaram seduzir o famoso Ulisses, ou o canto de um divino coral sinfônico.
Ah! Como tenho saudade do meu sertão!
Edson Valadares
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