A BODEGA
No
Sertão, bodega é denominação equivalente à venda, tenda, botequim, taberna,
tasca, baiuca, birosca.
No nosso povoado sertanejo havia duas ou
três dessas humildes casas de comércio, onde eram vendidos uma gama variada de
mercadorias e produtos das fazendas, tais como: feijão, farinha de mandioca,
milho par ração dos animais, rapadura, mel e fumo de rolo que servia para as
pessoas “mascarem” ou fazerem cigarros de palha. O produto mais solicitado era
a tradicional cachaça, caninha ou pura, fabricada nos toscos alambiques da
região.
O trabalhador do campo, homem humilde e
ignorante – apenas temente a Deus –, ainda em jejum, pela manhã, ordenava ao
bodegueiro: – me dê uma “pinga”. Sorvia quase de um gole o conteúdo de um copo,
observando o ritual ditado por sua crença, e oferecer ao “santo” (o seu anjo da
guarda), a primeira tragada, que derramava ao chão.
Nos dias de feira essas bodegas, também
conhecidas como tendas, tinham grande movimento, e faziam importantes negócios
que compensavam os dias parados durante a semana.
Nessas ocasiões, os comerciantes
contratavam mão-de-obra avulsa para auxiliá-los no atendimento dessa inusitada
demanda.
Quando o tempo cravou o número 9 em minha
testa, o meu avô, no desejo de iniciar-me nas lides do comércio, teve a péssima
ideia de arranjar, para mim, emprego de fim de semana na bodega mais importante
do povoado, a qual pertencia a um amigo dele.
Quando me foi dado ciência do assunto,
aceitei o cargo para não o contrariar, porém sem entusiasmo. Porque sabia que
as tarefas eram cansativas e deveria lidar com pessoas rudes e ignorantes.
Acenaram-me com um salário convidativo e
assumi as funções, demonstrando coragem, esforço e disposição no desempenho do
emprego, embora o meu íntimo confessasse alguma temeridade.
Fiquei, inicialmente, responsável pelo
setor de bebidas. As tarefas principais, atribuídas ao meu cargo eram:
a) atender os pedidos dos clientes,
selecionando as bebidas que desejavam;
b) derramar o líquido nos copos à
disposição, os quais eram de diversos tamanhos e modelos;
c) anotar as despesas de cada consumidor e
cobrar o pagamento e
d)lavar e enxugar os copos.
Em nossa fazenda, o meu relacionamento
limitava-se aos meus avós e aos meus amigos animais, principalmente os cabritos
e os carneirinhos brancos, companheiros de muitas brincadeiras.
Na escola, eu estudava com interesse e
muita seriedade, revelando ser o aluno mais aplicado. E apenas durante o curto
horário reservado à merenda, conversava amenidades com os colegas. As aulas
terminadas, regressava à fazenda, com pressa, para cumprir diversas obrigações.
Não mantinha o hábito de conversar com os
estranhos, ou mesmo com pessoas que nos visitavam de vez em quando,
principalmente tratando-se de adultos. Os meus avós eram de pouca conversa e os
raros assuntos de que tratavam versavam sempre sobre os problemas do dia a dia.
Sem que eu tivesse prévio aviso, de
repente, fui surpreendido com a chegada de uma prima, dois anos mais nova do
que eu, destinada a morar conosco porque falecera o pai.
Ainda me lembro, com a melhor nitidez, que
esse foi um dia de festa e de curiosidade par mim, pois os meus contatos com o
outro sexo eram escassos e apenas na escola. Banhei-me de contentamento com a
novidade e fiquei mais atônito do que o primeiro astronauta que pisou o solo
misterioso da lua. Devido à influência da garota, que era muito alegre e
inteligente, a vida na fazenda modificou-se. O seu sorriso, que lembrava o
desabrochar de uma flor, a sua meiguice, a voz estridente e uma sublime
alegria, entraram naquela casa, antes sombria, como a luz do Sol penetrava,
furtivamente, pelas janelas de uma residência.
Este preâmbulo fez-se necessário para que
eu pudesse explicar minhas reações naquele ambiente de trabalho.
Assustava-me sempre que um desconhecido
dirigia-se a mim formulando um pedido qualquer. Eu receava não atendê-lo bem e
sofrer algum tipo de repreensão. Aos poucos, porém, fui perdendo o acanhamento
e, movido pela curiosidade, passei a me interessar pelos assuntos que aquela
gente, quase primitiva, conversava e gargalhava, comendo, bebendo e cuspindo no
chão coberto de barro. Espantava-me ao ouvir a pronúncia errada das palavras,
as gírias próprias do sertão e o sotaque característico de tabaréus. Algumas
frases eu não compreendia, pois eram semelhantes a dialeto. Os assuntos mais em
voga diziam respeito ao tempo, à seca, ou às chuvas, conforme a estação e a
audiência. Comentavam também sobre doenças ou mortes de pessoas conhecidas, ou
de animais; discorriam sobre as viagens que empreendiam através de vastas
campinas do sertão, tangendo boiadas. E, ainda, falavam mal da vida alheia,
principalmente das mulheres. As conversas eram repetitivas, enfadonhas, e, com
o passar do tempo e a convivência, perdi o interesse da escuta.
Nos raros instantes de inatividade, por
ausência de clientes, eu era chamado para atuar em outras seções da bodega,
sempre que necessário.
No primeiro dia de trabalho, após
encerrado o expediente, à boca da noite, eu estava exausto. Recebi, com alegria,
o pagamento, que me pareceu uma fortuna, pois superava a minha costumeira
mesada de duzentos réis, concedida semanalmente pelo meu avô. Gastei o
dinheiro, imediatamente, comprando doces e outras guloseimas que desejava.
Começava a gostar do emprego e trabalhava
com afinco, demonstrando grande entusiasmo, interesse e responsabilidade.
Entretanto, passado um par de meses,
segundo me recordo, surgiu um garoto, vindo não sei de onde, que cochichou no
ouvido do dono da tenda que tinha me visto roubando dinheiro.
Alguém me deu conhecimento da calúnia,
nascida da inveja. Larguei o emprego, imediatamente, como se fosse culpado e
fugi para o abrigo da fazenda, soluçando, revoltado com a falsa acusação.
O comerciante não acreditou na difamação e
foi pessoalmente chamar-me de volta. Não aceitei o seu convite; agradeci o
gesto de atenção e disse-lhe adeus.
Parece desnecessário dizer que o garoto
difamador ocupou o meu lugar.
Na feira seguinte, o moleque, acompanhado
de outros, cruzou o meu caminho e gritou bem alto: LADRÃO! LADRÃO!
Ao ouvir aquele epíteto acusatório e
injusto, perdi a serenidade; as veias do meu pescoço intumesceram, e, pela
primeira vez na vida, senti o gosto do ódio. Bati as asas da coragem, avancei
em sua direção e apliquei-lhe no rosto um soco tão violento quanto o coice de
um cavalo, derrubando-o ao solo; o sangue jorrou da sua boca, umedecendo a
areia de um líquido rubro.
Assustado com a minha súbita reação, que
não esperava, o difamador levantou-se rápido, chorando e fugiu, desaparecendo
do meu caminho, para sempre.
Com a alma lavada pelo ato de vingança,
retornei, contente, para minha casa.
Edson Valadares
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