quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O BANDIDO




O BANDIDO

Era dia de sábado. O céu mostrava-se despido de nuvens. O Sol brilhava forte e refletia sua luz divina como se fosse produzida por milhões de espelhos de cristal, por acaso dependurados no firmamento.
O imenso calor de verão, naquele dia, fazia o sertanejo suar por todos os poros. Os animais, inquietos, sofriam o desconforto da intensa canícula do meio-dia, no descampado em que se situava o nosso povoado.
A feira, que se realizava nesse dia, regurgitava de vendedores, compradores e visitantes. As mais variadas mercadorias e produtos agrícolas atraíam a atenção dos interessados. Os mascates apregoavam a boa qualidade e a beleza dos seus tecidos coloridos.
Nas cercanias do barracão tosco e envelhecido do mercado, onde realizavam-se essas transações, vendiam-se em leilões, animais de trabalho ou de criação, principalmente cavalos.
O meu avô, misto de fazendeiro e de agricultor, levava os produtos da roça e animais, para negociar. Eu, criança robusta e esperta, o ajudava no transporte desses bens e também a mercadejá-los.
A feira encerrava suas atividades lá pelas dezoito horas, por motivo da escuridão, pois não havia iluminação pública. Logo após, as pessoas voltavam para suas residências. As sobras não negociadas ficavam guardadas em depósitos existentes no pequeno povoado, onde possuíamos casa, e algumas vezes lá pernoitávamos, quando o cansaço entorpecia os nossos corpos e o espírito aconselhava repouso.
Nessas ocasiões eu tinha a alegria de receber do meu avô a mesada semanal, a qual, durante muito tempo, permanecia em duzentos réis. Nesse tempo (década de 1930), não havia inflação, essa doença do sistema capitalista moderno, ávido de lucros cada vez maiores.
Minha mesada, embora pequena, permitia-me satisfazer pequenos desejos, tais como: comprar balas e outros doces.
Não devo omitir o fato de que, certa feita, decidi atender uma antiga vontade, com o que me dei muito mal.
Eu anelava comer, sem restrições, a polpa branca de coco seco. Comprei um, enorme, que uma velha, corcunda devido ao peso dos anos, colocava em destaque, como mostruário, num grande cesto.
Primeiro, bebi a água muito doce. Quebrei o coco com uma pedra pesada; mergulhei a faca afiada naquela carne tão desejada e mastiguei-a com gulodice.
Para meu infortúnio, eu ignorava a composição oleosa daquela polpa. E, como resultado, sofri as mais violentas cólicas de toda a minha vida. Seguiu-se uma diarreia de séria gravidade. Parecia que os intestinos estavam em revolução. Embora medicado com os poucos recursos da humilde farmácia local, gemi por várias horas e perdi peso rapidamente, o que muito preocupou meu avô. Antevi até a breve visita da morte. É desnecessário dizer que não comi mais coco nos anos seguintes.
Na feira posterior a esse episódio, voltei mais cedo para a fazenda; não me lembro por qual motivo. O meu avô regressaria à boca da noite.
Após percorrer a pé, penosamente, os seis quilômetros de distância que separava o povoado da fazenda, utilizando uma estrada estreita, forrada de seixos, areia e barro, abri a larga cancela que dava acesso à residência. Minha avó estava ausente, pois tinha viajado para outra cidade, onde morava minha mãe e meus irmãos.
Neste momento, o Sol começava a encobrir-se no horizonte, deixando em sua trajetória um rio de poeira dourada. Logo, as sombras da noite, como mortalhas, surgiam de todos os lados.
Aproximando-me de nossa casa, divisei, na penumbra, um vulto sentado no alpendre. Ao aproximar-me, disse-lhe: Boa noite! O homem não respondeu à minha gentil saudação. Era um mau sinal. Um friozinho de medo começou a percorrer a minha espinha. Olhei-o, entre curioso e preocupado. Era um sujeito de cor parda, aparentando 40 anos de idade. Baixo, corpulento, com olhos esbugalhados como os olhos de um sapo. A barba crescida lembrava fios de arame, e sua cabeça se escondia sob um chapéu de couro. O nariz era enorme, e em sua face via-se uma cicatriz em forma de meia-luz. A fisionomia do homem era desagradável, sugerindo receio e asco. O desconhecido calçava alpercatas de couro cru e vestia roupa de algodão. Estava armado “até os dentes”, como se dizia no sertão. Nas mãos segurava um objeto que parecia ser uma espingarda de dois canos. Trazia dois cintos de bala dependurados nos ombros, em forma de cruz. Portava, ainda, um enorme facão, um punhal enfiado no cinturão e mais algumas armas que não recordo.
Com a minha experiência de sertanejo acostumado a ver bandidos, reconheci nele um anjo do mal. Comecei a rezar, mentalmente, o credo.
Após um embaraçoso silêncio de segundos, o indivíduo falou com voz cavernosa: Cadê Bilau? Este era o apelido do meu avô que se chamava ESTANDISLAU.
Embora na ocasião eu contasse nos dedos uns oito anos de idade, o instinto de conservação estava instalado e de plantão. E como bom conselheiro recomendou-me dizer-lhe que meu avô estava viajando pelo sertão, tangendo gado, pois era vaqueiro.
Em seguida, o alienígena ordenou-me com voz áspera: Abra a porta! Transido de medo e esforçando-me para não dar a perceber, respondi que não tinha a chave e estava de passagem, pois ia pernoitar na casa de um tio, que ficava próxima. Por sorte ele não me revistou e pareceu ter ficado satisfeito com a minha resposta.
Começava a ficar escuro. Não havia luar. Resolvi interromper a conversa e tomei uma vereda. Adiante, escondi-me atrás de uma moita e fiquei na espreita, rezando para o bandido ir embora antes de que o meu  avô chegasse.
Após longos minutos de hesitação, que para mim pareceram séculos, o estranho levantou-se, ajeitou as armas; andava vagaroso e olhava para trás, de vez em quando.
Quando ele desapareceu na curva do caminho, senti um tremendo alívio e entrei na casa pela porta traseira, temendo um ocasional encontro dos dois homens.
Quis o destino que o meu avô tivesse retardado o seu regresso. Ao reencontrá-lo, relatei-lhe o acontecido e descrevi o sujeito o mais fiel possível, não sendo reconhecido pelo meu avô. Tratava-se, seguramente, de um fora-da-lei que teria assaltado ou assassinado o meu avô que nunca usava armas de fogo. Sem dúvida a Providência o acompanhava e o protegia.
Passados alguns dias, tivemos notícia de que um bandido solitário havia assaltado e roubado diversos proprietários das redondezas.
Foram organizadas patrulhas para dar caça ao inimigo da ordem e da lei.
O último capítulo desta pretensiosa história foi sepultado nos segredos e mistérios da caatinga. O bandido desapareceu para sempre.


                            Edson Valadares



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