O BANDIDO
Era dia de sábado. O céu mostrava-se
despido de nuvens. O Sol brilhava forte e refletia sua luz divina como se fosse
produzida por milhões de espelhos de cristal, por acaso dependurados no
firmamento.
O imenso calor de verão, naquele dia, fazia
o sertanejo suar por todos os poros. Os animais, inquietos, sofriam o
desconforto da intensa canícula do meio-dia, no descampado em que se situava o
nosso povoado.
A feira, que se realizava nesse dia,
regurgitava de vendedores, compradores e visitantes. As mais variadas
mercadorias e produtos agrícolas atraíam a atenção dos interessados. Os
mascates apregoavam a boa qualidade e a beleza dos seus tecidos coloridos.
Nas cercanias do barracão tosco e
envelhecido do mercado, onde realizavam-se essas transações, vendiam-se em
leilões, animais de trabalho ou de criação, principalmente cavalos.
O meu avô, misto de fazendeiro e de
agricultor, levava os produtos da roça e animais, para negociar. Eu, criança
robusta e esperta, o ajudava no transporte desses bens e também a
mercadejá-los.
A feira encerrava suas atividades lá pelas
dezoito horas, por motivo da escuridão, pois não havia iluminação pública. Logo
após, as pessoas voltavam para suas residências. As sobras não negociadas
ficavam guardadas em depósitos existentes no pequeno povoado, onde possuíamos
casa, e algumas vezes lá pernoitávamos, quando o cansaço entorpecia os nossos
corpos e o espírito aconselhava repouso.
Nessas ocasiões eu tinha a alegria de
receber do meu avô a mesada semanal, a qual, durante muito tempo, permanecia em
duzentos réis. Nesse tempo (década de 1930), não havia inflação, essa doença do
sistema capitalista moderno, ávido de lucros cada vez maiores.
Minha mesada, embora pequena, permitia-me
satisfazer pequenos desejos, tais como: comprar balas e outros doces.
Não devo omitir o fato de que, certa
feita, decidi atender uma antiga vontade, com o que me dei muito mal.
Eu anelava comer, sem restrições, a polpa
branca de coco seco. Comprei um, enorme, que uma velha, corcunda devido ao peso
dos anos, colocava em destaque, como mostruário, num grande cesto.
Primeiro, bebi a água muito doce. Quebrei
o coco com uma pedra pesada; mergulhei a faca afiada naquela carne tão desejada
e mastiguei-a com gulodice.
Para meu infortúnio, eu ignorava a composição
oleosa daquela polpa. E, como resultado, sofri as mais violentas cólicas de
toda a minha vida. Seguiu-se uma diarreia de séria gravidade. Parecia que os
intestinos estavam em revolução. Embora medicado com os poucos recursos da
humilde farmácia local, gemi por várias horas e perdi peso rapidamente, o que
muito preocupou meu avô. Antevi até a breve visita da morte. É desnecessário
dizer que não comi mais coco nos anos seguintes.
Na feira posterior a esse episódio, voltei
mais cedo para a fazenda; não me lembro por qual motivo. O meu avô regressaria
à boca da noite.
Após percorrer a pé, penosamente, os seis
quilômetros de distância que separava o povoado da fazenda, utilizando uma
estrada estreita, forrada de seixos, areia e barro, abri a larga cancela que
dava acesso à residência. Minha avó estava ausente, pois tinha viajado para
outra cidade, onde morava minha mãe e meus irmãos.
Neste momento, o Sol começava a
encobrir-se no horizonte, deixando em sua trajetória um rio de poeira dourada.
Logo, as sombras da noite, como mortalhas, surgiam de todos os lados.
Aproximando-me de nossa casa, divisei, na
penumbra, um vulto sentado no alpendre. Ao aproximar-me, disse-lhe: Boa noite!
O homem não respondeu à minha gentil saudação. Era um mau sinal. Um friozinho de
medo começou a percorrer a minha espinha. Olhei-o, entre curioso e preocupado.
Era um sujeito de cor parda, aparentando 40 anos de idade. Baixo, corpulento,
com olhos esbugalhados como os olhos de um sapo. A barba crescida lembrava fios
de arame, e sua cabeça se escondia sob um chapéu de couro. O nariz era enorme,
e em sua face via-se uma cicatriz em forma de meia-luz. A fisionomia do homem
era desagradável, sugerindo receio e asco. O desconhecido calçava alpercatas de
couro cru e vestia roupa de algodão. Estava armado “até os dentes”, como se
dizia no sertão. Nas mãos segurava um objeto que parecia ser uma espingarda de
dois canos. Trazia dois cintos de bala dependurados nos ombros, em forma de
cruz. Portava, ainda, um enorme facão, um punhal enfiado no cinturão e mais
algumas armas que não recordo.
Com a minha experiência de sertanejo
acostumado a ver bandidos, reconheci nele um anjo do mal. Comecei a rezar,
mentalmente, o credo.
Após um embaraçoso silêncio de segundos, o
indivíduo falou com voz cavernosa: Cadê Bilau? Este era o apelido do meu avô
que se chamava ESTANDISLAU.
Embora na ocasião eu contasse nos dedos
uns oito anos de idade, o instinto de conservação estava instalado e de
plantão. E como bom conselheiro recomendou-me dizer-lhe que meu avô estava
viajando pelo sertão, tangendo gado, pois era vaqueiro.
Em seguida, o alienígena ordenou-me com
voz áspera: Abra a porta! Transido de medo e esforçando-me para não dar a
perceber, respondi que não tinha a chave e estava de passagem, pois ia
pernoitar na casa de um tio, que ficava próxima. Por sorte ele não me revistou
e pareceu ter ficado satisfeito com a minha resposta.
Começava a ficar escuro. Não havia luar.
Resolvi interromper a conversa e tomei uma vereda. Adiante, escondi-me atrás de
uma moita e fiquei na espreita, rezando para o bandido ir embora antes de que o
meu avô chegasse.
Após longos minutos de hesitação, que para
mim pareceram séculos, o estranho levantou-se, ajeitou as armas; andava
vagaroso e olhava para trás, de vez em quando.
Quando ele desapareceu na curva do
caminho, senti um tremendo alívio e entrei na casa pela porta traseira, temendo
um ocasional encontro dos dois homens.
Quis o destino que o meu avô tivesse
retardado o seu regresso. Ao reencontrá-lo, relatei-lhe o acontecido e descrevi
o sujeito o mais fiel possível, não sendo reconhecido pelo meu avô. Tratava-se,
seguramente, de um fora-da-lei que teria assaltado ou assassinado o meu avô que
nunca usava armas de fogo. Sem dúvida a Providência o acompanhava e o protegia.
Passados alguns dias, tivemos notícia de
que um bandido solitário havia assaltado e roubado diversos proprietários das
redondezas.
Foram organizadas patrulhas para dar caça
ao inimigo da ordem e da lei.
O último capítulo desta pretensiosa
história foi sepultado nos segredos e mistérios da caatinga. O bandido
desapareceu para sempre.
Edson Valadares
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