terça-feira, 3 de outubro de 2017

CONTOS do SERTÃO



CASANOVA BRASILEIRO


       
O Casanova de que me ocupo nasceu no dia 21 de abril do ano da graça de Deus de 1921.
Morreu ingloriosamente, de infarto, no fundo da piscina de um clube social da cidade de Salvador, capital da Bahia, onde nadava no dia 22 de janeiro de 1993. Militar (capitão reformado).
Chamou-se EWERTON DE ALMEIDA VALADARES, filho de Pedro Baptista Valadares e de Maria de Almeida Valadares.
Veio ao mundo amparado por uma parteira ignorante, mas competente, no interior de uma casinha pintada de branco, as janelas azuis, cercada por um jardim de cravos e roseiras, cujas flores nos inebriavam com seus perfumes. A morada, banhada por um riacho pedregoso de águas cantantes, situava-se na fazenda Buril, no município de Simão Dias, Sergipe, pertencente ao nosso pai.
Creio que a família mudou-se para a cidade de Boquim antes do ano de 1930.
A sua primeira aventura amorosa do meu conhecimento aconteceu quando ele não havia atingido ainda a idade de dez anos.
Eu morava numa fazenda sita no município de Tobias Barreto, de propriedade de meus avós.
Num certo dia de verão, o capitão (daqui em diante, para a facilidade, mencionarei a patente dele) surgiu imprevistamente, para passar férias em nossa companhia.
Eu sabia da sua fama de arruaceiro, apesar da pouca idade.
Não senti alegria com a sua chegada. Ao contrário, senti no espírito um arrepio de receio e preocupação com sua presença.
Não éramos amigos.
Eu me proponho a registrar aqui somente as mais pitorescas histórias do meu irmão, aquelas que ainda estão vivas na minha memória.
Evidentemente que contar a vida de aventuras do capitão desafiaria a competência de escritores como o próprio Casanova, Balzac, e outros.

A vila onde eu estudava ficava a seis quilômetros da fazenda.
Ali morava um competente carpinteiro, exímio fabricante de móveis rústicos, cujo comércio lhe dava fama de homem rico.
Como valentão conhecido, era respeitado na comunidade.
Era pai de uma menina de menos de dez anos de idade.
O moleque artificioso fingia ir ao pasto vigiar os animais de criação e fiscalizar as cercas. Voltava para casa quando as sombras da noite surgiam na serrania. Minha avó se intrigava, mas o esperto tinha sempre uma desculpa, uma justificativa convincente. Ela me arguia sobre os seus desaparecimentos diários. Eu sabia o motivo, porém me calava.
O Casanova tupiniquim estava namorando, às escondidas, a filha do carpinteiro, indiferente ao perigo que corria se o pai dela desconfiasse.
O estróina colocava cabrestos em cavalos ou jumentos e montando-os em pelo galopava em direção ao povoado para encontrar-se furtivamente com seu amor.
Entretanto, num dia de azar, o futuro capitão deu-se mal.
Montado num jumento do meu avô, ele passava, distraído, num beco da vila (rua estreita e curta). De súbito, um bando de urubus que estavam pousados em cercas próximas, assustados com a intrusão ao seu “habitat”, levantou voo. A assuada assustou o animal, que empinou e jogou ao chão o Casanova. Ele caiu sobre o braço esquerdo, quebrando-o.
À tarde do mesmo dia um grupo de homens carregava às costas, numa rede, o conquistador sertanejo, depositando-o no alpendre de nossa casa. O dono da pequena farmácia da vila havia posto talas no local da contusão.
E então, a verdade veio à tona, como um peixe morto.
O meu avô regressava de viagem e, ao tomar conhecimento do triste episódio, transportou a vítima para a casa dos pais, imediatamente.
Constava que o pai da menina já sabia do namorico da filha e espreitava meu irmão para dar-lhe uma surra, embora fosse ele amigo dos meus avós.
Quando eu completei dez anos de idade, voltei a morar com meus pais, na cidade de Boquim, e durante alguns anos pude acompanhar o noticiário referente ao Casanova-rufião. As histórias, verdadeiras ou não, eram um sem-fim.
Meu irmão era inteligente, mas não gostava de estudar. Gazeava muitas aulas e meu pai o espancava.
Praticava todos os tipos de jogos de azar com dinheiro dado por minha mãe, que o amava e protegia.
Morava na cidade de uns 20.000 habitantes, uma balzaquiana muito bonita, solteira, e de posses. A mulher era cobiçada pelos homens da sociedade, casados ou solteiros.
Muitos anos depois, o capitão confessou-me ter sido amante dela desde os dez anos de idade até aos dezesseis, quando, fustigado pelo nosso pai, fugiu para Salvador.
A bondosa senhora doava-lhe gorda mesada.
O meu irmão sumiu da tela de meus olhos por alguns anos.
Minha mãe não o esqueceu, chorava frequentemente, e o ingrato raramente mandava notícias suas.
Os anos sucediam-se, sem que eu soubesse do Casanova. Já em Aracaju, onde passamos a morar, eis que um dia, vindo do colégio, entro em casa e lá estava o herói, vestido com uma elegante e bem engomada farda de sargento do exército.
As nossas brigas do passado foram esquecidas e nos tornamos amigos.
Havia se casado por duas vezes. Isso, porém, não o impedia de bancar o Casanova. A sua predileção, segundo me contava rindo, eram as empregadas domésticas, fossem elas brancas, pardas, mulatas ou negras.
Tratando-se de mulher, a que viesse na rede era peixe. Contava aventuras eletrizantes com mulheres casadas e, muitas, passou por risco de morte.
Ele residia na capital da Bahia, mas sendo também radiotelegrafista de uma companhia de aviação, não pagava passagem aérea, motivo por que estava frequentemente na capital de Sergipe, onde nossos avós também passaram a residir.
Aracaju era o “habitat” natural do capitão, pois os Valadares eram e continuam sendo ainda hoje um dos “clãs” de Sergipe.
Morava em Aracaju uma irmã mais nova da citada balzaquiana de Boquim. Era amante de um delegado famoso e violento, membro de uma das mais ilustres famílias do Estado. A sua fama provinha da sua propalada valentia, que metia pavor aos fora-da-lei. Até versos compostos por poetas circulavam sobre o homem, embora já decorridos mais de cinqüenta anos, eu ainda recordo os seguintes:

“Lá vem a lua saindo
Por detrás de um limoeiro;
Não é a lua, não é nada;
É Simeão com o Tintureiro.”

Tintureiro era o que hoje conhecemos com o nome de camburão.
O capitão nutria por essa mulher uma paixão doentia, por ela generosamente correspondida, mesmo cientes do risco que corriam.
Ele procurava-a sempre que visitava Aracaju e em sua própria casa. O Casanova também era sujeito corajoso e confiava, como defesa, na farda de militar e num revólver que carregava como sua segunda sombra.
Num determinado dia, o capitão penetrou na casa do delegado e gozava das delícias do Paraíso.
Inesperadamente, o delegado abriu a porta principal da pequena casa. O ruído da chave e os passos do homem puseram o casal em pânico. O capitão agarrou as roupas e o sapato e, ainda nu, pulou a janela do fundo do imóvel sob uma saraivada de balas. Corria pela modesta rua do subúrbio, como um Adão, à vista da vizinhança atônita e curiosa que assomou às portas e às janelas de suas casas.
Quando se julgou em segurança, vestiu as roupas e calçou os sapatos num terreno baldio, e pegou o primeiro trem destinado a Salvador.
Costumava contar essa história às gargalhadas.
Em Salvador, ele e a segunda esposa, mãe de quatro filhos, residiam numa casa coberta de telhas, no subúrbio. Era amigo do vizinho que tinha uma “empregadinha” muito bonita, mulata, que dormia no quartinho dos fundos.
O capitão, à meia-noite, quando a esposa dormia, trepava na casa do vizinho e na forma de uma senha, combinada por ambos, começava a miar: miau, miau, miau! Se a garota respondesse com outros três “miaus”, o Casanova pulava para o quintal e entrava no quarto.
Esses encontros furtivos realizaram-se muitas vezes.
Contudo, o patrão da moça passou a desconfiar daqueles gatos noturnos que prejudicavam o seu sono.
Em conversa com o capitão, queixou-se dos miados dos gatos e informou-o que havia carregado sua espingarda para matá-los.
Essa conversa era apenas um aviso antecipado ao conquistador.
É escusado dizer que a partir daquele dia cessaram os dolentes miados e as passadas de gatos sobre o telhado.
O eterno imitador de Casanova e de Don Juan casou-se três vezes. O primeiro casamento, no religioso, durou menos de dois anos. A esposa, dizia ele, era maluca, e foi embora para o Rio de Janeiro, onde morreu muitos anos depois.
O segundo casamento, no civil e no religioso, deu-lhe quatro filhos, um dos quais “excepcional”, morto aos 22 anos de idade.
Eu o julgava muito feliz nesse casamento que acompanhava de perto, pois também morava em Salvador.
Por motivos que desconheço, Casanova abandonou a família, embora tivesse filhos de menor idade. Apaixonou-se por uma jovem com quem se casou numa igreja católica. Eu fui padrinho do casamento. O padre-casamenteiro tinha sido meu professor de português em Aracaju nos reconhecemos. Antes do início da cerimônia, o reverendo fixou o olhar no capitão e perguntou: Eu não já lhe casei uma vez? Pegado de surpresa, o capitão empalideceu, mas negou com veemência. E eu, como padrinho, vi-me obrigado a mentir, confirmando a negativa.

Deste terceiro casamento, lhe nasceram-lhe três filhos, e finalmente, o capitão encontrou a verdadeira felicidade.
Entretanto, não se livrou da tara que lhe dera o destino. Mesmo assim, continuou suas aventuras amorosas.
O casamento perdurou porque a sua última esposa o amava muito e no dito popular era uma “santa”. Acostumou-se a perdoá-lo quando ela o pegava em flagrante delito, até em sua própria cama, ele se ajoelhava, chorava, e pedia perdão.
Era um grande artista.
Eu morava no Rio de Janeiro e fui passar férias em Aracaju.
Encontrei na rua o capitão. Disse-me que estava morando em Aracaju e me convidou para conhecer o seu apartamento.
Em lá chegando, deparei-me com uma mocinha. Pensei que fosse visita. Perguntei pela esposa. Respondeu-me: É esta aqui. Abandonei a família em Salvador! A jovem, muito bonita, fazia lembrar Helena, heroína de Tróia.
De repente, a porta abriu-se e entrou na sala, onde eu estava, a sua filha mais velha, que a mãe mandou a Aracaju para acabar de vez com aquele idílio. Vi-me envolvido num tremendo escândalo que atraiu muitos curiosos. O novo lar do capitão foi desfeito. Mandou a garota de volta para Salvador, vendeu os móveis e utensílios e, cabisbaixo, voltou para casa, rebocado pela filha valente como Atenéia.
Embora não fosse católico praticante, o astucioso aventureiro comprou um rosário e beijando os pés da esposa jurava ter sido tentado por Satanás!
E para finalizar a história da vida rocambolesca do capitão Valadares – esse Casanova do século XX – conto mais esta que foi relatada pelo seu filho do mesmo nome, seu aluno e até companheiro de aventuras donjuanescas.
Considero a história quase impublicável, mas me disponho a escrevê-la pela sua originalidade, pelo seu ineditismo, e por estar autorizado pelo meu sobrinho.
E não seria justo privar os meus leitores deste fato, escondendo-o no silêncio do tempo.
Minha mãe, quando vivia, comprou em Aracaju um casarão destinado à moradia dos seus pais e de uma irmã solteirona.
Morreu minha mãe. Morreram meus avós. E minha tia passou a morar no mesmo casarão em companhia dos espectros e das lembranças dos seus entes queridos mortos.
Aos 75 anos, minha tia adoeceu gravemente e, por recomendação médica, viajou para Salvador.
Internaram-na num hospital, sofreu delicada operação, e morreu.
O corpo foi transportado pelo meu irmão e outros parentes para ser enterrado no mausoléu da família, em Aracaju.
Já era noite quando a última pá de cal foi lançada à sepultura. O capitão, muito sensível em toda a sua vivência, chorou copiosamente a morte da tia querida. Fazia lembrar Achilles chorando pela morte de seu amigo Pátroclo, no campo de batalha de Tróia.
À noite, pai e filho, vestidos de luto fechado, foram dormir no casarão.
O relógio da parede badalou à meia-noite, e Morfeu não descia para fechar as pálpebras dos sonolentos. Então, simultaneamente, tiveram uma idéia extraordinária. O capitão telefonou para um sujeito do seu conhecimento e contratou duas pequenas para fazer-lhes companhia naquela noite de prazer e de medo da alma da defunta.
O capitão morou em Brasília durante uns dois anos. Comprou de sociedade com um finório uma pequena empresa de ônibus. Claro que faliu!
Nesse entretempo praticou ato de virtude. Atraiu para Brasília três irmãs e um irmão, que nessa cidade prosperaram e vivem felizes.
Voltou a morar em Salvador, como funcionário de empresa aérea (inspetor). Viajava de vez em quando para Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
Diz-se que o marinheiro tem uma mulher em cada porto. Parodiando esse ditado, eu digo que o capitão tinha uma mulher em cada aeroporto. Dizia-se, aos cochichos, que o Casanova mantinha “esposas” ou “filiais” naquelas cidades.
Ele me dizia que desconfiava ter filhos fora do casamento, porém não tinha certeza.
A sua segunda esposa teve, recentemente, um fim de vida trágico. Morreu em Salvador, assassinada a faca por um menino de rua que ela protegia.
O capitão, após reformado, interessou-se pela política, chegando a eleger-se vereador, em Salvador. Os seus discursos na TV, ricos de retórica, ganharam notoriedade, pelo estilo opulento capaz de fazer inveja ao tribuno romano Cícero.
Utilizava-se de palavras talvez desconhecidas do próprio Euclides da Cunha, o seu escritor preferido.
Alguns anos antes de visar seu passaporte para a Eternidade, o grande Casanova do Brasil operou-se de um tumor no cérebro e perdeu a fala, o que lhe causou atroz sofrimento, pois falar sempre foi sua divina ferramenta.
Mesmo assim, quando saía à rua, até em minha companhia, costumava beliscar os bumbuns das cabrochas com as quais simpatizava, embora já fosse um Casanova aposentado.
Nós, seus oito irmãos, nunca compreendemos o êxito do capitão-casanova com as mulheres. Não era bonito; de estatura baixa, aleijado de um braço, careca, as pernas curtas, o tronco forte. A natureza deu-lhe muita força física e “papa-na-lingua” para imitar o verdadeiro Casanova. E na Eternidade, se houver, o capitão estará aguardando a chegada dos irmãos Valadares, enquanto relata a outros espíritos as suas diabruras no planeta Terra.


ADEUS CAPITÃO – DESCANSE EM PAZ!

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