CASANOVA BRASILEIRO
O
Casanova de que me ocupo nasceu no dia 21 de abril do
ano da graça de Deus de 1921.
Morreu ingloriosamente, de infarto, no fundo da piscina de um
clube social da cidade de Salvador, capital da Bahia, onde nadava no dia 22 de
janeiro de 1993. Militar (capitão
reformado).
Chamou-se
EWERTON DE ALMEIDA VALADARES, filho de Pedro Baptista Valadares e de Maria de
Almeida Valadares.
Veio
ao mundo amparado por uma parteira ignorante, mas competente, no interior de
uma casinha pintada de branco, as janelas azuis, cercada por um jardim de
cravos e roseiras, cujas flores nos inebriavam com seus perfumes. A morada,
banhada por um riacho pedregoso de águas cantantes, situava-se na fazenda
Buril, no município de Simão Dias, Sergipe, pertencente ao nosso pai.
Creio
que a família mudou-se para a cidade de Boquim antes do ano de 1930.
A
sua primeira aventura amorosa do meu conhecimento aconteceu quando ele não
havia atingido ainda a idade de dez anos.
Eu
morava numa fazenda sita no município de Tobias Barreto, de propriedade de meus
avós.
Num
certo dia de verão, o capitão (daqui em diante, para a facilidade, mencionarei
a patente dele) surgiu imprevistamente, para passar férias em nossa companhia.
Eu
sabia da sua fama de arruaceiro, apesar da pouca idade.
Não
senti alegria com a sua chegada. Ao contrário, senti no espírito um arrepio de
receio e preocupação com sua presença.
Não
éramos amigos.
Eu
me proponho a registrar aqui somente as mais pitorescas histórias do meu irmão,
aquelas que ainda estão vivas na minha memória.
Evidentemente
que contar a vida de aventuras do capitão desafiaria a competência de
escritores como o próprio Casanova, Balzac, e outros.
A
vila onde eu estudava ficava a seis quilômetros da fazenda.
Ali
morava um competente carpinteiro, exímio fabricante de móveis rústicos, cujo
comércio lhe dava fama de homem rico.
Como
valentão conhecido, era respeitado na comunidade.
Era
pai de uma menina de menos de dez anos de idade.
O
moleque artificioso fingia ir ao pasto vigiar os animais de criação e
fiscalizar as cercas. Voltava para casa quando as sombras da noite surgiam na
serrania. Minha avó se intrigava, mas o esperto tinha sempre uma desculpa, uma
justificativa convincente. Ela me arguia sobre os seus desaparecimentos
diários. Eu sabia o motivo, porém me calava.
O
Casanova tupiniquim estava namorando, às escondidas, a filha do carpinteiro,
indiferente ao perigo que corria se o pai dela desconfiasse.
O
estróina colocava cabrestos em cavalos ou jumentos e montando-os em pelo
galopava em direção ao povoado para encontrar-se furtivamente com seu amor.
Entretanto,
num dia de azar, o futuro capitão deu-se mal.
Montado
num jumento do meu avô, ele passava, distraído, num beco da vila (rua estreita
e curta). De súbito, um bando de urubus que estavam pousados em cercas
próximas, assustados com a intrusão ao seu “habitat”, levantou voo. A assuada
assustou o animal, que empinou e jogou ao chão o Casanova. Ele caiu sobre o
braço esquerdo, quebrando-o.
À
tarde do mesmo dia um grupo de homens carregava às costas, numa rede, o
conquistador sertanejo, depositando-o no alpendre de nossa casa. O dono da
pequena farmácia da vila havia posto talas no local da contusão.
E
então, a verdade veio à tona, como um peixe morto.
O
meu avô regressava de viagem e, ao tomar conhecimento do triste episódio,
transportou a vítima para a casa dos pais, imediatamente.
Constava
que o pai da menina já sabia do namorico da filha e espreitava meu irmão para
dar-lhe uma surra, embora fosse ele amigo dos meus avós.
Quando
eu completei dez anos de idade, voltei a morar com meus pais, na cidade de Boquim,
e durante alguns anos pude acompanhar o noticiário referente ao
Casanova-rufião. As histórias, verdadeiras ou não, eram um sem-fim.
Meu
irmão era inteligente, mas não gostava de estudar. Gazeava muitas aulas e meu
pai o espancava.
Praticava
todos os tipos de jogos de azar com dinheiro dado por minha mãe, que o amava e
protegia.
Morava
na cidade de uns 20.000 habitantes, uma balzaquiana muito bonita, solteira, e
de posses. A mulher era cobiçada pelos homens da sociedade, casados ou
solteiros.
Muitos
anos depois, o capitão confessou-me ter sido amante dela desde os dez anos de
idade até aos dezesseis, quando, fustigado pelo nosso pai, fugiu para Salvador.
A
bondosa senhora doava-lhe gorda mesada.
O
meu irmão sumiu da tela de meus olhos por alguns anos.
Minha
mãe não o esqueceu, chorava frequentemente, e o ingrato raramente mandava
notícias suas.
Os
anos sucediam-se, sem que eu soubesse do Casanova. Já em Aracaju, onde passamos
a morar, eis que um dia, vindo do colégio, entro em casa e lá estava o herói,
vestido com uma elegante e bem engomada farda de sargento do exército.
As
nossas brigas do passado foram esquecidas e nos tornamos amigos.
Havia
se casado por duas vezes. Isso, porém, não o impedia de bancar o Casanova. A
sua predileção, segundo me contava rindo, eram as empregadas domésticas, fossem
elas brancas, pardas, mulatas ou negras.
Tratando-se de mulher, a que viesse na rede era peixe. Contava
aventuras eletrizantes com mulheres casadas e, muitas, passou por risco de
morte.
Ele residia na capital da Bahia, mas sendo também
radiotelegrafista de uma companhia de aviação, não pagava passagem aérea,
motivo por que estava frequentemente na capital de Sergipe, onde nossos avós
também passaram a residir.
Aracaju era o “habitat” natural do capitão, pois os Valadares eram
e continuam sendo ainda hoje um dos “clãs” de Sergipe.
Morava em Aracaju uma irmã mais nova da citada balzaquiana de
Boquim. Era amante de um delegado famoso e violento, membro de uma das mais
ilustres famílias do Estado. A sua fama provinha da sua propalada valentia, que
metia pavor aos fora-da-lei. Até versos compostos por poetas circulavam sobre o
homem, embora já decorridos mais de cinqüenta anos, eu ainda recordo os
seguintes:
“Lá vem a lua saindo
Por detrás de um limoeiro;
Não é a lua, não é nada;
É Simeão com o Tintureiro.”
Tintureiro era o que hoje conhecemos com o nome de camburão.
O capitão nutria por essa mulher uma paixão doentia, por
ela generosamente correspondida, mesmo cientes do risco que corriam.
Ele
procurava-a sempre que visitava Aracaju e em sua própria casa. O Casanova
também era sujeito corajoso e confiava, como defesa, na farda de militar e num
revólver que carregava como sua segunda sombra.
Num
determinado dia, o capitão penetrou na casa do delegado e gozava das delícias
do Paraíso.
Inesperadamente,
o delegado abriu a porta principal da pequena casa. O ruído da chave e os
passos do homem puseram o casal em
pânico. O capitão agarrou as roupas e o sapato e, ainda nu,
pulou a janela do fundo do imóvel sob uma saraivada de balas. Corria pela
modesta rua do subúrbio, como um Adão, à vista da vizinhança atônita e curiosa
que assomou às portas e às janelas de suas casas.
Quando
se julgou em segurança, vestiu as roupas e calçou os sapatos num terreno
baldio, e pegou o primeiro trem destinado a Salvador.
Costumava
contar essa história às gargalhadas.
Em
Salvador, ele e a segunda esposa, mãe de quatro filhos, residiam numa casa
coberta de telhas, no subúrbio. Era amigo do vizinho que tinha uma
“empregadinha” muito bonita, mulata, que dormia no quartinho dos fundos.
O
capitão, à meia-noite, quando a esposa dormia, trepava na casa do vizinho e na
forma de uma senha, combinada por ambos, começava a miar: miau, miau, miau! Se
a garota respondesse com outros três “miaus”, o Casanova pulava para o quintal
e entrava no quarto.
Esses
encontros furtivos realizaram-se muitas vezes.
Contudo,
o patrão da moça passou a desconfiar daqueles gatos noturnos que prejudicavam o
seu sono.
Em
conversa com o capitão, queixou-se dos miados dos gatos e informou-o que havia
carregado sua espingarda para matá-los.
Essa
conversa era apenas um aviso antecipado ao conquistador.
É
escusado dizer que a partir daquele dia cessaram os dolentes miados e as
passadas de gatos sobre o telhado.
O
eterno imitador de Casanova e de Don Juan casou-se três vezes. O primeiro
casamento, no religioso, durou menos de dois anos. A esposa, dizia ele, era
maluca, e foi embora para o Rio de Janeiro, onde morreu muitos anos depois.
O
segundo casamento, no civil e no religioso, deu-lhe quatro
filhos, um dos quais “excepcional”, morto
aos 22 anos de idade.
Eu o julgava muito feliz nesse casamento que acompanhava de perto,
pois também morava em Salvador.
Por motivos que desconheço, Casanova abandonou a família, embora
tivesse filhos de menor idade. Apaixonou-se por uma jovem com quem se casou
numa igreja católica. Eu fui padrinho do casamento. O padre-casamenteiro tinha
sido meu professor de português em Aracaju nos reconhecemos. Antes do início da
cerimônia, o reverendo fixou o olhar no capitão e perguntou: Eu não já lhe
casei uma vez? Pegado de surpresa, o capitão empalideceu, mas negou com
veemência. E eu, como padrinho, vi-me obrigado a mentir, confirmando a
negativa.
Deste terceiro casamento, lhe nasceram-lhe três filhos, e
finalmente, o capitão encontrou a verdadeira felicidade.
Entretanto, não se livrou da tara que lhe dera o destino. Mesmo
assim, continuou suas aventuras amorosas.
O casamento perdurou porque a sua última esposa o amava muito e no
dito popular era uma “santa”. Acostumou-se a perdoá-lo quando ela o pegava em
flagrante delito, até em sua própria cama, ele se ajoelhava, chorava, e pedia
perdão.
Era um grande artista.
Eu morava no Rio de Janeiro e fui passar férias em Aracaju.
Encontrei na rua o capitão. Disse-me que estava morando em Aracaju
e me convidou para conhecer o seu apartamento.
Em lá chegando, deparei-me com uma mocinha. Pensei que fosse
visita. Perguntei pela esposa. Respondeu-me: É esta aqui. Abandonei a família
em Salvador! A jovem, muito bonita, fazia lembrar Helena, heroína de Tróia.
De repente, a porta abriu-se e entrou na sala, onde eu estava, a
sua filha mais velha, que a mãe mandou a Aracaju para acabar de vez com aquele
idílio. Vi-me envolvido num tremendo escândalo que atraiu muitos curiosos. O
novo lar do capitão foi desfeito. Mandou a garota de volta para Salvador,
vendeu os móveis e utensílios e, cabisbaixo, voltou para casa, rebocado pela
filha valente como Atenéia.
Embora não fosse católico praticante, o astucioso aventureiro
comprou um rosário e beijando os pés da esposa jurava ter sido tentado por
Satanás!
E para finalizar a história da vida rocambolesca do capitão
Valadares – esse Casanova do século XX – conto mais esta que foi relatada pelo
seu filho do mesmo nome, seu aluno e até companheiro de aventuras donjuanescas.
Considero a história quase impublicável, mas me disponho a
escrevê-la pela sua originalidade, pelo seu ineditismo, e por estar autorizado
pelo meu sobrinho.
E não seria justo privar os meus leitores deste fato, escondendo-o
no silêncio do tempo.
Minha mãe, quando vivia, comprou em Aracaju um casarão destinado à
moradia dos seus pais e de uma irmã solteirona.
Morreu minha mãe. Morreram meus avós. E minha tia passou a morar
no mesmo casarão em companhia dos espectros e das lembranças dos seus entes
queridos mortos.
Aos 75 anos, minha tia adoeceu gravemente e, por recomendação
médica, viajou para Salvador.
Internaram-na num hospital, sofreu delicada operação, e morreu.
O corpo foi transportado pelo meu irmão e outros parentes para ser
enterrado no mausoléu da família, em Aracaju.
Já era noite quando a última pá de cal foi lançada à sepultura. O
capitão, muito sensível em toda a sua vivência, chorou copiosamente a morte da
tia querida. Fazia lembrar Achilles chorando pela morte de seu
amigo Pátroclo, no campo de batalha de Tróia.
À noite, pai e filho, vestidos de luto fechado, foram dormir no
casarão.
O relógio da parede badalou à meia-noite, e Morfeu não descia para
fechar as pálpebras dos sonolentos. Então, simultaneamente, tiveram uma idéia
extraordinária. O capitão telefonou para um sujeito do seu conhecimento e
contratou duas pequenas para fazer-lhes companhia naquela noite de prazer e de
medo da alma da defunta.
O capitão morou em Brasília durante uns dois anos. Comprou de
sociedade com um finório uma pequena empresa de ônibus. Claro que faliu!
Nesse entretempo praticou ato de virtude. Atraiu para Brasília
três irmãs e um irmão, que nessa cidade prosperaram e vivem felizes.
Voltou a morar em Salvador, como funcionário de empresa aérea (inspetor).
Viajava de vez em quando para Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
Diz-se que o marinheiro tem uma mulher em cada porto. Parodiando
esse ditado, eu digo que o capitão tinha uma mulher em cada aeroporto.
Dizia-se, aos cochichos, que o Casanova mantinha “esposas” ou “filiais”
naquelas cidades.
Ele me dizia que desconfiava ter filhos fora do casamento, porém
não tinha certeza.
A sua segunda esposa teve, recentemente, um fim de vida trágico.
Morreu em Salvador, assassinada a faca por um menino de rua que ela protegia.
O capitão, após reformado, interessou-se pela política, chegando a
eleger-se vereador, em
Salvador. Os seus discursos na TV, ricos de retórica,
ganharam notoriedade, pelo estilo opulento capaz de fazer inveja ao tribuno
romano Cícero.
Utilizava-se de palavras talvez desconhecidas do próprio Euclides
da Cunha, o seu escritor preferido.
Alguns anos antes de visar seu passaporte para a Eternidade, o
grande Casanova do Brasil operou-se de um tumor no cérebro e perdeu a fala, o
que lhe causou atroz sofrimento, pois falar sempre foi sua divina ferramenta.
Mesmo assim, quando saía à rua, até em minha companhia, costumava
beliscar os bumbuns das cabrochas com as quais simpatizava, embora já fosse um
Casanova aposentado.
Nós, seus oito irmãos, nunca compreendemos o êxito do
capitão-casanova com as mulheres. Não era bonito; de estatura baixa, aleijado
de um braço, careca, as pernas curtas, o tronco forte. A natureza deu-lhe muita
força física e “papa-na-lingua” para imitar o verdadeiro Casanova. E na
Eternidade, se houver, o capitão estará aguardando a chegada dos irmãos
Valadares, enquanto relata a outros espíritos as suas diabruras no planeta
Terra.
ADEUS CAPITÃO – DESCANSE EM PAZ!
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