terça-feira, 3 de outubro de 2017

CONTOS do SERTÃO



CONVERSA ao PÉ-do-FOGO


                       


       
Antes de completar os meus atribulados dez anos de idade, já havia concluído o curso primário na escola pública do nosso humilde povoado sertanejo, SAMAMBAIA, após quatro anos de penosas caminhadas feitas ao longo dos doze quilômetros (ida e volta), que percorria, diariamente, a pé. A jornada iniciou-se no ano de 1930, quando eu contava apenas seis anos.
        É verdade. Nessa curta idade eu “singrava”, sozinho, uma enorme distância, para estudar. Os caminhos que trilhava eram, em realidade, veredas abertas no corpo da terra pelos cascos dos animais, pés humanos e correntes produzidas pelas chuvas; eram caminhos poeirentos, cobertos de um barro vermelho escorregadio que, nos dias de chuva, grudava como goma arábica.
        Além dos obstáculos topográficos que se levantavam no trajeto, a criança hercúlea que eu fui, arrostava perigos enormes e variados. O mais frequente relacionava-se ao encontro de manadas de gados ou bois, que pastavam isolados, e que tinham por divertimento ameaçar meninos desprotegidos, correndo atrás deles para amolar os seus chifres criminosos nas carnes inocentes. Quantas vezes eu escapei “por um triz”, subindo em árvores, muitas delas com espinhos, com a destreza e rapidez de um macaco; outras vezes cruzava com cobras que me causavam susto, medo e nojo.
        Eu tinha, também, muito receio do ser humano, meu semelhante. Assim é que a visão de um homem montado ou a pé, surgindo à distância e aproximando-se, pouco a pouco, naqueles descampados vazios, fazia-me tremer de pavor, como treme a “vara verde” soprada por forte ventania. Se ainda não tivesse sido notado pelo viandante, sempre que possível, afastava-me da estrada e escondia-me nas moitas. É que, naqueles tempos, havia muitos fora-da-lei no sertão, e eu não sabia qual o comportamento do desconhecido ao encontrar um menino solitário naqueles ínvios caminhos.
        Também causava-me calafrios a visão de cachorros que corriam assustados pelas estradas, desacompanhados, com os rabos entre as pernas, pois eles eram, geralmente, o que chamavam de “cachorro azedo”, isto é, cão atacado de raiva. Eu portava um facão como arma de defesa, que servia apenas para me dar uma falsa noção de segurança.
        A minha infância desenrolada no sertão constitui-se, na verdade, numa epopeia. Os píncaros mais salientes dessa epopeia acham-se relatados em muitos contos que eu escrevi. Certamente, inúmeros e menos relevantes acontecimentos e incidentes foram omitidos, pois, se revelados, seriam suficientes para preencher centenas de páginas, entediando o leitor, segundo acredito.
        Assim, cabe-me descrever no curso dessa história, ou melhor dizendo, desta retrospectiva, que o meu avô resolveu me contar “ao pé do fogo”, porque, ao que eu saiba, foi essa a primeira e última vez que ele abriu para alguém o seu verbo, que esteve sempre fechado com o cadeado do mutismo e da introspecção.
        Ele me convidou para conversar, o que jamais havia acontecido... Até então ele falava comigo apenas monólogos, que na verdade eram ordens ou instruções, principalmente deste tipo: vá buscar água no açude; leve o cavalo ao pasto; vamos viajar amanhã; vamos à feira, etc.
        Fiquei “gelado” ao ouvir suas palavras, pronunciadas com extrema delicadeza, qualidade esta que estava alheia aos costumes do sertanejo rude, acostumado a lidar mais com animais do que com seres humanos.
Preliminarmente, ele acendeu um braseiro, junto ao qual fez um pequeno monte de castanhas de caju que pretendia assar e comer no curso da palestra.
Abro aqui um parêntesis para dizer que considero a castanha de caju assada na brasa e comida ainda quente, como o mais gostoso manjar oferecido ao homem pela Natureza.
Nos intervalos em que ele não mastigava as castanhas, mantinha a longa conversação, que durava algumas horas. Eu estava ansioso e muito curioso para tomar conhecimento de tudo o que meu avô pretendia me dizer, pois o demorado circunlóquio me fazia suspeitar da importância das revelações que iria ouvir.
De início, ele pigarreou após cheirar e introduzir nas narinas uma pitada de rapé, que era o seu único vício. Em seguida, as suas palavras começaram a jorrar como de uma fonte.
Principiou recuando o seu pensamento a um passado distante, pretendendo reconstruir as raízes dos meus ancestrais, esclarecendo que as informações que tinha sobre o assunto vinham sendo transmitidas por muitas gerações.
Disse-me ele que os “ALMEIDAS” tinham sido famílias de muita influência em Portugal, nos tempos do Brasil-Colônia. Alguns deles foram agraciados com título de nobreza. Esclareceu-me que os “VALADARES” tiveram a mesma importância dos “ALMEIDAS”, na vizinha Espanha.















CRIME no MATADOURO?

                   
A alimentação das populações sertanejas sempre foi baseado no tripé: feijão, carne e farinha de mandioca.
Na década de 1930, os vegetais eram pouco consumidos por aquela gente. Os mais utilizados, porém, eram a abóbora, o tomate, o quiabo e o maxixe, espécies fartamente cultivadas em nossa fazenda.
Na ausência da geladeira, as carnes frescas adquiridas nas feiras, ou obtidas “in loco”, eram retalhadas, salgadas, e postas pra secar ao sol, num estendal ou varal. Durante esse processo, as pessoas mais cuidadosas e conscientes das regras de higiene, vigiavam as carnes, enquanto expostas ao tempo, para tanger os enxames de moscas-varejeiras, ou o assédio constante de urubus famintos.
Em nossa pequena comunidade, o açougue funcionava somente nos dias de feira. Vendiam carnes de boi, de porco, de caprino e de ovinos. Os animais silvestres e aves abatidas eram negociados no “barracão”, que era uma espécie de galpão coberto de telhas.
Em certa noite, pernoitei em nossa casa sita no povoado. Levantei-me ao despertar do dia e, guiado pelos tênues raios do sol da manhã, dirigi-me ao matadouro, onde os animais eram sacrificados, indefesos - como os cristãos nos circos romanos - para matar a fome e satisfazer a gulodice dos homens. Fui lá movido por antiga curiosidade, ignorante da selvageria a que iria assistir.
Ainda hoje, apesar do mofo do tempo, arrependo-me daquela minha indiscrição e vontade de conhecer tudo.
O cenário lembrava o circo de que falamos, onde os convertidos ao cristianismo e os gladiadores morriam estupidamente.
Uma meia dúzia de bois gordos que estavam enclausurados num cercado, conhecido como “curral”, lambiam-se, mugiam tristemente pela perda da liberdade, e usavam os chifres dando pontadas uns nos outros, em uma espécie de brincadeira nervosa, como se estivessem solidários com o destino comum que os aguardava: a morte.
Ao lado do curral havia um cercado menor, parecido com um pelourinho. No centro, erguia-se imponente o cadafalso, constituído de um grosso moirão com cheiro de sangue, onde os condenados, inocentes, eram cingidos em correntes de aço para a imolação.
O espetáculo dantesco ia começar. Eu vigiava todos os movimentos sem perder detalhes.
Alguns homens usando aventais de couro entraram no curral, como se fossem toureiros espanhóis penetrando numa arena. Selecionaram a primeira vítima que era um belo boi zebu, de cor marrom e listas brancas, exibindo um cupim que lembrava uma pequena colina.
O chefe dos magarefes chamava-se Amintas, portador de uma enorme pinta preta no rosto, possivelmente um sinal de carrasco. O impacto daquilo a que eu iria presenciar dentro em pouco, gravou, para sempre, nos cofres da minha mente, a figura e o nome daquele homem, pois ele foi o responsável pelas facadas desferidas no infeliz animal, sem piedade, e que, aos olhos de uma criança, seria um assassinato. As cenas que então assisti ficaram gravadas em minha memória para sempre, como placa em monumento, desafiando o clamor do tempo.
O boi foi amarrado ao cepo. Os outros animais, confinados no redil vizinho, observavam, com evidente olhar tristonho, o que se passava com o desafortunado companheiro. Cavavam a terra com os cascos, demonstrando impaciência, levantando lençóis de poeira, e urravam sem cessar, numa espécie de canto lamuriento, como se compreendessem o fim próximo.
Os algozes amarraram as pernas dianteiras e traseiras do condenado a virar churrasco para imobilizá-lo, por precaução. Dizia-se que, nesse momento, o animal pressentia a morte, gemia e vertia lágrimas como os mártires franceses, cujas cabeças eram cortadas pela guilhotina durante a revolução.
Amintas, o carniceiro, era um sujeito alto e forte, com cara de bandido asiático. Aproximou-se de mansinho, como se fosse amigo do touro. Após acariciá-lo, com falsidade, enfiou, num golpe traiçoeiro, uma enorme peixeira no peito desprotegido do animal. O sangue vermelho surgiu e jorrava em cataratas, sendo recolhido em vasilhas de barro pelos auxiliares do carrasco.
Ouvia-se, em seguida à estocada, o estrondo de um urro, seguido de uma sucessão de gemidos lancinantes, quase humanos. Após decorridos alguns minutos, o boi, também uma criação divina, vociferou um longo e triste gemido final; estrebuchando em protesto inútil, morreu.
O magarefe que eu julgava um assassino, em razão da inocência da idade, desfechou outras facadas no moribundo, aparentemente desnecessárias.
Em uma carroça puxada por um burro velho, magro, já com direito à aposentadoria, levaram o cadáver para o açougue, onde tiraram-lhe o couro e retalharam-no para vender a carne ainda sanguinolenta aos ávidos consumidores que se amontoavam no recinto, como urubus à espreita da carniça.
Antes que o segundo touro sofresse o mesmo martírio, fugi dali com lágrimas fluindo dos olhos e penetrei na minha casa, revoltado com o crime que acabava de testemunhar, e com vontade de vomitar. Tinha a impressão de que assistira a um assassinato premeditado, planejado e executado publicamente, sob a proteção das leis feitas pelos homens.
Na primeira aula de catecismo que se seguiu a esse episódio, relatei tudo à minha professora e externei a minha condenação àquela selvageria praticada por aqueles que se dizem filhos de Deus, criados à sua imagem e semelhança.
Argumentei, ainda, que não entendia porque a nossa comunidade, composta de católicos, em sua maioria, que aos domingos se engalanavam para ir à Santa Missa, onde recebiam a comunhão, “engoliam” Cristo representado na hóstia, rezavam suas orações, cantavam salmos e ouviam longos sermões dos padres, em que o amor, a bondade, a caridade, a solidariedade e a moral eram enfatizados; esses mesmos cristãos matavam, no sábado seguinte, de forma cruel, os animais, nossos irmãos, para comer as suas carnes.
A minha sábia professora, formada na Escola Normal da Capital, era a pessoa mais instruída daquela região e tentava aliviar a minha angústia e espantar as dúvidas alojadas no meu espírito.
Esclarecia ela que a religião católica não proibia aos homens matarem os animais para alimentarem-se de suas carnes. Acrescentava que alguns grupos de povos, que professavam outras crenças religiosas, não comiam carne. Dizia ainda que existem países de civilização mais antiga, milenar, cujos povos eram herbívoros, e somente comiam carne de peixe.
Eram as melhores explicações que a paciente e esforçada professora do interior sertanejo poderia me oferecer, embora fossem insuficientes para extrair do meu “eu” as raízes da dúvida de natureza ontológica.
Aquelas cenas dantescas, fotografadas pelas retinas dos meus olhos de criança, assentaram-se no meu espírito como a poeira se assenta após a ventania e me acompanham, desde então, como faz a minha própria sombra.
Cinquenta anos depois, eu voltei àquele povoado, hoje distrito, já servido de luz elétrica, telefone e outras facilidades do progresso.
Reencontrei Amintas, o magarefe, ainda vivo. Fi-lo voltar o pensamento para o passado e relatei-lhe aqueles tristes fatos pelos quais eu sempre o condenei ao purgatório. Ele soprou um ligeiro sorriso, próprio de quem não estava arrependido, pois aquela era a sua profissão. Esclareceu que agora era comerciante de secos e molhados.
Tive notícias que ele morreu dois anos depois desse nosso último encontro.
Após concluir os estudos que me deram um diploma de curso superior, fui despertado e atraído para a ciência filosófica, confiando encontrar aí as respostas ou lenitivos para aplacar as minhas antigas inquietações e perplexidades do espírito, relativamente ao problema do comportamento ou da conduta humana.
Li com profundo interesse e curiosidade livros escritos pelos mais ilustres pensadores, os filósofos, dissecando-os como se fossem cadáveres, à procura de respostas.
Tudo em vão. A filosofia me pareceu excessivamente dialética, metafísica, tentando, apenas com o raciocínio, descobrir a verdade das coisas, sem grande êxito, creio.
E, finalmente, para evitar quaisquer inquietações da minha alma sobre uma questão insolúvel, o meu bom senso despertou e aconselhou-me a renunciar a esses pensamentos e apenas viver a vida, sem indagar.



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