CONVERSA ao
PÉ-do-FOGO
Antes
de completar os meus atribulados dez anos de idade, já havia concluído o curso
primário na escola pública do nosso humilde povoado sertanejo, SAMAMBAIA, após
quatro anos de penosas caminhadas feitas ao longo dos doze quilômetros (ida e
volta), que percorria, diariamente, a pé. A jornada iniciou-se no ano de 1930,
quando eu contava apenas seis anos.
É verdade. Nessa curta idade eu
“singrava”, sozinho, uma enorme distância, para estudar. Os caminhos que
trilhava eram, em realidade, veredas abertas no corpo da terra pelos cascos dos
animais, pés humanos e correntes produzidas pelas chuvas; eram caminhos
poeirentos, cobertos de um barro vermelho escorregadio que, nos dias de chuva,
grudava como goma arábica.
Além dos obstáculos topográficos que se
levantavam no trajeto, a criança hercúlea que eu fui, arrostava perigos enormes
e variados. O mais frequente relacionava-se ao encontro de manadas de gados ou
bois, que pastavam isolados, e que tinham por divertimento ameaçar meninos
desprotegidos, correndo atrás deles para amolar os seus chifres criminosos nas
carnes inocentes. Quantas vezes eu escapei “por um triz”, subindo em árvores,
muitas delas com espinhos, com a destreza e rapidez de um macaco; outras vezes
cruzava com cobras que me causavam susto, medo e nojo.
Eu tinha, também, muito receio do ser
humano, meu semelhante. Assim é que a visão de um homem montado ou a pé,
surgindo à distância e aproximando-se, pouco a pouco, naqueles descampados
vazios, fazia-me tremer de pavor, como treme a “vara verde” soprada por forte
ventania. Se ainda não tivesse sido notado pelo viandante, sempre que possível,
afastava-me da estrada e escondia-me nas moitas. É que, naqueles tempos, havia
muitos fora-da-lei no sertão, e eu não sabia qual o comportamento do
desconhecido ao encontrar um menino solitário naqueles ínvios caminhos.
Também causava-me calafrios a visão de
cachorros que corriam assustados pelas estradas, desacompanhados, com os rabos
entre as pernas, pois eles eram, geralmente, o que chamavam de “cachorro
azedo”, isto é, cão atacado de raiva. Eu portava um facão como arma de defesa,
que servia apenas para me dar uma falsa noção de segurança.
A minha infância desenrolada no sertão
constitui-se, na verdade, numa epopeia. Os píncaros mais salientes dessa
epopeia acham-se relatados em muitos contos que eu escrevi. Certamente,
inúmeros e menos relevantes acontecimentos e incidentes foram omitidos, pois,
se revelados, seriam suficientes para preencher centenas de páginas, entediando
o leitor, segundo acredito.
Assim, cabe-me descrever no curso dessa
história, ou melhor dizendo, desta retrospectiva, que o meu avô resolveu me
contar “ao pé do fogo”, porque, ao que eu saiba, foi essa a primeira e última
vez que ele abriu para alguém o seu verbo, que esteve sempre fechado com o
cadeado do mutismo e da introspecção.
Ele me convidou para conversar, o que
jamais havia acontecido... Até então ele falava comigo apenas monólogos, que na
verdade eram ordens ou instruções, principalmente deste tipo: vá buscar água no
açude; leve o cavalo ao pasto; vamos viajar amanhã; vamos à feira, etc.
Fiquei “gelado” ao ouvir suas palavras,
pronunciadas com extrema delicadeza, qualidade esta que estava alheia aos
costumes do sertanejo rude, acostumado a lidar mais com animais do que com
seres humanos.
Preliminarmente,
ele acendeu um braseiro, junto ao qual fez um pequeno monte de castanhas de
caju que pretendia assar e comer no curso da palestra.
Abro
aqui um parêntesis para dizer que considero a castanha de caju assada na brasa
e comida ainda quente, como o mais gostoso manjar oferecido ao homem pela
Natureza.
Nos
intervalos em que ele não mastigava as castanhas, mantinha a longa conversação,
que durava algumas horas. Eu estava ansioso e muito curioso para tomar
conhecimento de tudo o que meu avô pretendia me dizer, pois o demorado
circunlóquio me fazia suspeitar da importância das revelações que iria ouvir.
De
início, ele pigarreou após cheirar e introduzir nas narinas uma pitada de rapé,
que era o seu único vício. Em seguida, as suas palavras começaram a jorrar como
de uma fonte.
Principiou
recuando o seu pensamento a um passado distante, pretendendo reconstruir as
raízes dos meus ancestrais, esclarecendo que as informações que tinha sobre o
assunto vinham sendo transmitidas por muitas gerações.
Disse-me
ele que os “ALMEIDAS” tinham sido famílias de muita influência em Portugal, nos
tempos do Brasil-Colônia. Alguns deles foram agraciados com título de nobreza.
Esclareceu-me que os “VALADARES” tiveram a mesma importância dos “ALMEIDAS”, na
vizinha Espanha.
CRIME no
MATADOURO?
A
alimentação das populações sertanejas sempre foi baseado no tripé: feijão,
carne e farinha de mandioca.
Na
década de 1930, os vegetais eram pouco consumidos por aquela gente. Os mais
utilizados, porém, eram a abóbora, o tomate, o quiabo e o maxixe, espécies
fartamente cultivadas em nossa fazenda.
Na
ausência da geladeira, as carnes frescas adquiridas nas feiras, ou obtidas “in
loco”, eram retalhadas, salgadas, e postas pra secar ao sol, num estendal ou
varal. Durante esse processo, as pessoas mais cuidadosas e conscientes das
regras de higiene, vigiavam as carnes, enquanto expostas ao tempo, para tanger
os enxames de moscas-varejeiras, ou o assédio constante de urubus famintos.
Em
nossa pequena comunidade, o açougue funcionava somente nos dias de feira.
Vendiam carnes de boi, de porco, de caprino e de ovinos. Os animais silvestres
e aves abatidas eram negociados no “barracão”, que era uma espécie de galpão
coberto de telhas.
Em
certa noite, pernoitei em nossa casa sita no povoado. Levantei-me ao despertar
do dia e, guiado pelos tênues raios do sol da manhã, dirigi-me ao matadouro,
onde os animais eram sacrificados, indefesos - como os cristãos nos circos
romanos - para matar a fome e satisfazer a gulodice dos homens. Fui lá movido
por antiga curiosidade, ignorante da selvageria a que iria assistir.
Ainda
hoje, apesar do mofo do tempo, arrependo-me daquela minha indiscrição e vontade
de conhecer tudo.
O
cenário lembrava o circo de que falamos, onde os convertidos ao cristianismo e
os gladiadores morriam estupidamente.
Uma
meia dúzia de bois gordos que estavam enclausurados num cercado, conhecido como
“curral”, lambiam-se, mugiam tristemente pela perda da liberdade, e usavam os
chifres dando pontadas uns nos outros, em uma espécie de brincadeira nervosa,
como se estivessem solidários com o destino comum que os aguardava: a morte.
Ao
lado do curral havia um cercado menor, parecido com um pelourinho. No centro,
erguia-se imponente o cadafalso, constituído de um grosso moirão com cheiro de
sangue, onde os condenados, inocentes, eram cingidos em correntes de aço para a
imolação.
O
espetáculo dantesco ia começar. Eu vigiava todos os movimentos sem perder
detalhes.
Alguns
homens usando aventais de couro entraram no curral, como se fossem toureiros
espanhóis penetrando numa arena. Selecionaram a primeira vítima que era um belo
boi zebu, de cor marrom e listas brancas, exibindo um cupim que lembrava uma
pequena colina.
O
chefe dos magarefes chamava-se Amintas, portador de uma enorme pinta preta no
rosto, possivelmente um sinal de carrasco. O impacto daquilo a que eu iria
presenciar dentro em pouco, gravou, para sempre, nos cofres da minha mente, a
figura e o nome daquele homem, pois ele foi o responsável pelas facadas
desferidas no infeliz animal, sem piedade, e que, aos olhos de uma criança,
seria um assassinato. As cenas que então assisti ficaram gravadas em minha
memória para sempre, como placa em monumento, desafiando o clamor do tempo.
O
boi foi amarrado ao cepo. Os outros animais, confinados no redil vizinho,
observavam, com evidente olhar tristonho, o que se passava com o desafortunado
companheiro. Cavavam a terra com os cascos, demonstrando impaciência,
levantando lençóis de poeira, e urravam sem cessar, numa espécie de canto
lamuriento, como se compreendessem o fim próximo.
Os
algozes amarraram as pernas dianteiras e traseiras do condenado a virar
churrasco para imobilizá-lo, por precaução. Dizia-se que, nesse momento, o
animal pressentia a morte, gemia e vertia lágrimas como os mártires franceses,
cujas cabeças eram cortadas pela guilhotina durante a revolução.
Amintas,
o carniceiro, era um sujeito alto e forte, com cara de bandido asiático.
Aproximou-se de mansinho, como se fosse amigo do touro. Após acariciá-lo, com
falsidade, enfiou, num golpe traiçoeiro, uma enorme peixeira no peito
desprotegido do animal. O sangue vermelho surgiu e jorrava em cataratas, sendo
recolhido em vasilhas de barro pelos auxiliares do carrasco.
Ouvia-se,
em seguida à estocada, o estrondo de um urro, seguido de uma sucessão de
gemidos lancinantes, quase humanos. Após decorridos alguns minutos, o boi,
também uma criação divina, vociferou um longo e triste gemido final;
estrebuchando em protesto inútil, morreu.
O
magarefe que eu julgava um assassino, em razão da inocência da idade, desfechou
outras facadas no moribundo, aparentemente desnecessárias.
Em
uma carroça puxada por um burro velho, magro, já com direito à aposentadoria,
levaram o cadáver para o açougue, onde tiraram-lhe o couro e retalharam-no para
vender a carne ainda sanguinolenta aos ávidos consumidores que se amontoavam no
recinto, como urubus à espreita da carniça.
Antes
que o segundo touro sofresse o mesmo martírio, fugi dali com lágrimas fluindo
dos olhos e penetrei na minha casa, revoltado com o crime que acabava de
testemunhar, e com vontade de vomitar. Tinha a impressão de que assistira a um
assassinato premeditado, planejado e executado publicamente, sob a proteção das
leis feitas pelos homens.
Na
primeira aula de catecismo que se seguiu a esse episódio, relatei tudo à minha
professora e externei a minha condenação àquela selvageria praticada por
aqueles que se dizem filhos de Deus, criados à sua imagem e semelhança.
Argumentei,
ainda, que não entendia porque a nossa comunidade, composta de católicos, em
sua maioria, que aos domingos se engalanavam para ir à Santa Missa, onde
recebiam a comunhão, “engoliam” Cristo representado na hóstia, rezavam suas
orações, cantavam salmos e ouviam longos sermões dos padres, em que o amor, a
bondade, a caridade, a solidariedade e a moral eram enfatizados; esses mesmos
cristãos matavam, no sábado seguinte, de forma cruel, os animais, nossos
irmãos, para comer as suas carnes.
A
minha sábia professora, formada na Escola Normal da Capital, era a pessoa mais
instruída daquela região e tentava aliviar a minha angústia e espantar as
dúvidas alojadas no meu espírito.
Esclarecia
ela que a religião católica não proibia aos homens matarem os animais para
alimentarem-se de suas carnes. Acrescentava que alguns grupos de povos, que
professavam outras crenças religiosas, não comiam carne. Dizia ainda que
existem países de civilização mais antiga, milenar, cujos povos eram
herbívoros, e somente comiam carne de peixe.
Eram
as melhores explicações que a paciente e esforçada professora do interior
sertanejo poderia me oferecer, embora fossem insuficientes para extrair do meu
“eu” as raízes da dúvida de natureza ontológica.
Aquelas
cenas dantescas, fotografadas pelas retinas dos meus olhos de criança,
assentaram-se no meu espírito como a poeira se assenta após a ventania e me
acompanham, desde então, como faz a minha própria sombra.
Cinquenta
anos depois, eu voltei àquele povoado, hoje distrito, já servido de luz
elétrica, telefone e outras facilidades do progresso.
Reencontrei
Amintas, o magarefe, ainda vivo. Fi-lo voltar o pensamento para o passado e
relatei-lhe aqueles tristes fatos pelos quais eu sempre o condenei ao purgatório.
Ele soprou um ligeiro sorriso, próprio de quem não estava arrependido, pois
aquela era a sua profissão. Esclareceu que agora era comerciante de secos e
molhados.
Tive
notícias que ele morreu dois anos depois desse nosso último encontro.
Após
concluir os estudos que me deram um diploma de curso superior, fui despertado e
atraído para a ciência filosófica, confiando encontrar aí as respostas ou
lenitivos para aplacar as minhas antigas inquietações e perplexidades do
espírito, relativamente ao problema do comportamento ou da conduta humana.
Li
com profundo interesse e curiosidade livros escritos pelos mais ilustres
pensadores, os filósofos, dissecando-os como se fossem cadáveres, à procura de
respostas.
Tudo
em vão. A filosofia me pareceu excessivamente dialética, metafísica, tentando,
apenas com o raciocínio, descobrir a verdade das coisas, sem grande êxito,
creio.
E,
finalmente, para evitar quaisquer inquietações da minha alma sobre uma questão
insolúvel, o meu bom senso despertou e aconselhou-me a renunciar a esses
pensamentos e apenas viver a vida, sem indagar.
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