O CABO-ELEITORAL
Creio que foi por volta do ano de 1932 – quando o
sertão sofria, devido à grande seca – que se realizaram as eleições para a
escolha do presidente dos Estados e outros cargos públicos.
O candidato a presidente de Sergipe, pelo partido da
oposição, era o dr. Eronildes Ferreira de Carvalho, médico, político e
fazendeiro, a quem os seus inimigos acusavam de assegurar a LAMPIÃO, em suas
fazendas, proteção e armamento.
Assim é que, numa radiosa manhã de domingo, alguns
automóveis de luxo, cujas marcas eu desconhecia, despejaram em nosso povoado
vários homens, moços e idosos. Estavam bem vestidos. A maioria deles usava
ternos brancos, chapéus de luxo e gravatas coloridas, possivelmente de seda.
Esses sinais exteriores indicavam que se tratava de gente rica.
Utilizando um equipamento que chamavam de
“alto-falante”, convidavam o povo, aos berros, para comparecer a única praça do
povoado, a fim de participar de um “comício”, quando vários candidatos aos
cargos eletivos iriam discursar.
Estimulado por toda aquela movimentação desusada e
ainda por aquelas pessoas que me pareciam estranhas, quis também a curiosidade
que eu fosse um dos primeiros a chegar à praça e quedar-me bem próximo aos
oradores, que me ignoravam. Afinal, seria aquela a minha primeira experiência
com a política e eu encarava tudo aquilo como se fosse uma aula em minha
escola.
A pracinha apinhou-se de gente, rapidamente, pois era
dia de missa a que todos compareciam.
Eu estava ansioso para ouvir aqueles senhores, que
pareciam sábios, teriam a dizer à população sertaneja, e observava o contraste
entre as suas figuras aristocráticas com as daquelas pessoas humildes.
A assistência conversava alta e animada, ansiosa pelo
inicio dos trabalhos, quando um homem alto, idoso, parecendo ser o mais
importante do grupo, subiu a um banco estragado que ameaçava ruir e pediu silêncio
e atenção. Explicou, de início, o motivo do comício, que era as próximas
eleições, utilizando expressões refinadas que quase não entendíamos. Apresentou
os candidatos, indicando os cargos a que pleiteavam. Desceu do banco e outros
oradores o sucederam, utilizando a mesma cantilena. As promessas de auxílio ou
assistência ao povo sofredor do sertão era o tema central das falações.
Prometiam àquele povo rude e abandonado pelos poderes públicos até mesmo bons
lugares no paraíso. Havia aplausos tímidos que eram estimulados pelos próprios
visitantes, com euforia, a quem imitávamos sem muita convicção.
Algumas semanas mais tarde, num mesmo dia de domingo,
comecei a observar que uma verdadeira multidão, em termos sertanejos, vestida
com as melhores roupas e calçados, invadia o povoado, como formigas.
Alguns chegavam a pé; outros vinham a cavalo ou
jumento, ajaezados com aviamentos que reluziam aos flamejantes raios do sol;
outros, ainda, viajavam apinhados em carros de boi cujas rodas rangiam de forma
estridente, por causa dos eixos sem lubrificação. As pessoas mais abastadas
chegavam transportadas por automóveis e caminhões.
Aquela inusitada movimentação, que lembrava uma
colmeia em atividade, atraía a minha curiosidade infantil. Fui informado que
era dia de eleição, anteriormente anunciada pelos políticos que nos visitaram.
As pessoas habilitadas a votar eram chamadas de
“eleitores”, uma palavra nova, como outras que eu tomava conhecimento naquela
oportunidade, e incorporava ao arquivo da minha memória. À medida que se
aproximavam do prédio onde achavam-se as urnas, os eleitores que não eram ricos
– o povo –, por exigência dos cabo-eleitorais de cada partido, organizavam-se
em filas indianas, separadas por facção e proibidos de qualquer comunicação
entre si.
O silêncio era total, como se a fila se destinasse a
homenagear defunto de relevância.
As pessoas “importantes” não entravam em fila e tinham
o privilégio de votarem imediatamente.
Fiquei intrigado com um dos termos que aprendi naquele
dia: cabo-eleitoral. Mantive-me à espreita com o intuito de saber quais seriam
as funções e responsabilidades daqueles indivíduos cuidadosos e exigentes com
seus eleitores. Verifiquei que os mesmos eram tão somente auxiliares dos
candidatos, os políticos.
Eles deviam organizar as filas dos eleitores do seu
partido, conhecidos como “eleitores de cabresto”, fornecer-lhes as cédulas ou
votos a serem depositados nas urnas. Deviam, ainda, providenciar comida e
bebida para os votantes, coisa obrigatória naquela época. Eram também induzidos
a comprar, com dinheiro, os eleitores independentes, que vendiam os seus votos,
muitas vezes, a mais de um partido. O cabo-eleitoral vigiava o seu grupo, como
um cão de guarda, armado de revólver que todos viam.
E foi então que, por volta do meio-dia, quando o sol
estava mais quente, o cabo-eleitoral do partido do Dr.Eronildes, um rapaz bem
falante e muito simpático, vestido com elegante terno de linho branco, ousou
aliciar eleitores do partido contrário, que estava no poder, oferecendo aos
eleitores notas de mil réis, novinhas e tentadoras.
De súbito, eclodiu um tumulto, seguido de gritos,
discussões, xingamentos e troca de sopapos, envolvendo várias pessoas.
As filas dos eleitores, que ainda aguardavam o momento
de votar, dissolveram-se por causa da briga que se alastrava como incêndio na
caatinga, para desespero dos cabos eleitorais que se esforçavam para
reorganizá-las.
As autoridades locais intervieram, tentando apaziguar
os ânimos, dando tiros para o alto. Nisso, um sujeito forte, crioulo, com cara
de bandido, cabo-eleitoral da situação, sacou do seu revólver e disparou vários
tiros no corpo do rival do outro partido, o qual, sangrando muito, tombou ao
solo.
Trouxeram a vítima para a casa do meu avô, que ficava
próxima ao local da contenda. Depositaram o cabo-eleitoral, que parecia estar
morrendo, no chão duro da sala; o sangue escorria-lhe como água de um chuveiro
aberto.
Aquela cena sangrenta foi um choque para o meu
espírito, pois era a primeira vez que eu testemunhava um assassinato.
Decorridos alguns minutos, colocaram a vítima num
automóvel preto que partiu em grande velocidade em direção ao hospital mais
próximo, que ficava numa cidade a trinta quilômetros de distância.
Soube-se, mais tarde, que ele morreu durante a viagem.
O assassino, assecla do partido da situação,
evadiu-se, protegido pela polícia local.
Minha avó, com a ajuda de uma vassoura, sabão de coco
e soda cáustica, lavou o chão ensopado de sangue, fazendo desaparecer os sinais
daquele crime, para sempre.
Entretanto, minha mente gravou, como placa em
monumento, aquela cena selvagem que agitou o meu espírito ingênuo, como se
tivesse recebido um choque elétrico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário