terça-feira, 3 de outubro de 2017

CONTOS DO SERTÃO - O CABO ELEITORAL



O CABO-ELEITORAL

 



 




Creio que foi por volta do ano de 1932 – quando o sertão sofria, devido à grande seca – que se realizaram as eleições para a escolha do presidente dos Estados e outros cargos públicos.
O candidato a presidente de Sergipe, pelo partido da oposição, era o dr. Eronildes Ferreira de Carvalho, médico, político e fazendeiro, a quem os seus inimigos acusavam de assegurar a LAMPIÃO, em suas fazendas, proteção e armamento.
Assim é que, numa radiosa manhã de domingo, alguns automóveis de luxo, cujas marcas eu desconhecia, despejaram em nosso povoado vários homens, moços e idosos. Estavam bem vestidos. A maioria deles usava ternos brancos, chapéus de luxo e gravatas coloridas, possivelmente de seda. Esses sinais exteriores indicavam que se tratava de gente rica.
Utilizando um equipamento que chamavam de “alto-falante”, convidavam o povo, aos berros, para comparecer a única praça do povoado, a fim de participar de um “comício”, quando vários candidatos aos cargos eletivos iriam discursar.
Estimulado por toda aquela movimentação desusada e ainda por aquelas pessoas que me pareciam estranhas, quis também a curiosidade que eu fosse um dos primeiros a chegar à praça e quedar-me bem próximo aos oradores, que me ignoravam. Afinal, seria aquela a minha primeira experiência com a política e eu encarava tudo aquilo como se fosse uma aula em minha escola.
A pracinha apinhou-se de gente, rapidamente, pois era dia de missa a que todos compareciam.
Eu estava ansioso para ouvir aqueles senhores, que pareciam sábios, teriam a dizer à população sertaneja, e observava o contraste entre as suas figuras aristocráticas com as daquelas pessoas humildes.
A assistência conversava alta e animada, ansiosa pelo inicio dos trabalhos, quando um homem alto, idoso, parecendo ser o mais importante do grupo, subiu a um banco estragado que ameaçava ruir e pediu silêncio e atenção. Explicou, de início, o motivo do comício, que era as próximas eleições, utilizando expressões refinadas que quase não entendíamos. Apresentou os candidatos, indicando os cargos a que pleiteavam. Desceu do banco e outros oradores o sucederam, utilizando a mesma cantilena. As promessas de auxílio ou assistência ao povo sofredor do sertão era o tema central das falações. Prometiam àquele povo rude e abandonado pelos poderes públicos até mesmo bons lugares no paraíso. Havia aplausos tímidos que eram estimulados pelos próprios visitantes, com euforia, a quem imitávamos sem muita convicção.
Algumas semanas mais tarde, num mesmo dia de domingo, comecei a observar que uma verdadeira multidão, em termos sertanejos, vestida com as melhores roupas e calçados, invadia o povoado, como formigas.
Alguns chegavam a pé; outros vinham a cavalo ou jumento, ajaezados com aviamentos que reluziam aos flamejantes raios do sol; outros, ainda, viajavam apinhados em carros de boi cujas rodas rangiam de forma estridente, por causa dos eixos sem lubrificação. As pessoas mais abastadas chegavam transportadas por automóveis e caminhões.
Aquela inusitada movimentação, que lembrava uma colmeia em atividade, atraía a minha curiosidade infantil. Fui informado que era dia de eleição, anteriormente anunciada pelos políticos que nos visitaram.
As pessoas habilitadas a votar eram chamadas de “eleitores”, uma palavra nova, como outras que eu tomava conhecimento naquela oportunidade, e incorporava ao arquivo da minha memória. À medida que se aproximavam do prédio onde achavam-se as urnas, os eleitores que não eram ricos – o povo –, por exigência dos cabo-eleitorais de cada partido, organizavam-se em filas indianas, separadas por facção e proibidos de qualquer comunicação entre si.
O silêncio era total, como se a fila se destinasse a homenagear defunto de relevância.
As pessoas “importantes” não entravam em fila e tinham o privilégio de votarem imediatamente.
Fiquei intrigado com um dos termos que aprendi naquele dia: cabo-eleitoral. Mantive-me à espreita com o intuito de saber quais seriam as funções e responsabilidades daqueles indivíduos cuidadosos e exigentes com seus eleitores. Verifiquei que os mesmos eram tão somente auxiliares dos candidatos, os políticos.
Eles deviam organizar as filas dos eleitores do seu partido, conhecidos como “eleitores de cabresto”, fornecer-lhes as cédulas ou votos a serem depositados nas urnas. Deviam, ainda, providenciar comida e bebida para os votantes, coisa obrigatória naquela época. Eram também induzidos a comprar, com dinheiro, os eleitores independentes, que vendiam os seus votos, muitas vezes, a mais de um partido. O cabo-eleitoral vigiava o seu grupo, como um cão de guarda, armado de revólver que todos viam.
E foi então que, por volta do meio-dia, quando o sol estava mais quente, o cabo-eleitoral do partido do Dr.Eronildes, um rapaz bem falante e muito simpático, vestido com elegante terno de linho branco, ousou aliciar eleitores do partido contrário, que estava no poder, oferecendo aos eleitores notas de mil réis, novinhas e tentadoras.
De súbito, eclodiu um tumulto, seguido de gritos, discussões, xingamentos e troca de sopapos, envolvendo várias pessoas.
As filas dos eleitores, que ainda aguardavam o momento de votar, dissolveram-se por causa da briga que se alastrava como incêndio na caatinga, para desespero dos cabos eleitorais que se esforçavam para reorganizá-las.
As autoridades locais intervieram, tentando apaziguar os ânimos, dando tiros para o alto. Nisso, um sujeito forte, crioulo, com cara de bandido, cabo-eleitoral da situação, sacou do seu revólver e disparou vários tiros no corpo do rival do outro partido, o qual, sangrando muito, tombou ao solo.
Trouxeram a vítima para a casa do meu avô, que ficava próxima ao local da contenda. Depositaram o cabo-eleitoral, que parecia estar morrendo, no chão duro da sala; o sangue escorria-lhe como água de um chuveiro aberto.
Aquela cena sangrenta foi um choque para o meu espírito, pois era a primeira vez que eu testemunhava um assassinato.
Decorridos alguns minutos, colocaram a vítima num automóvel preto que partiu em grande velocidade em direção ao hospital mais próximo, que ficava numa cidade a trinta quilômetros de distância.
Soube-se, mais tarde, que ele morreu durante a viagem.
O assassino, assecla do partido da situação, evadiu-se, protegido pela polícia local.
Minha avó, com a ajuda de uma vassoura, sabão de coco e soda cáustica, lavou o chão ensopado de sangue, fazendo desaparecer os sinais daquele crime, para sempre.
Entretanto, minha mente gravou, como placa em monumento, aquela cena selvagem que agitou o meu espírito ingênuo, como se tivesse recebido um choque elétrico.






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