terça-feira, 3 de outubro de 2017

CONTOS do SERTÃO



A CASA MAL-ASSOMBRADA
 






                              



Perambulando pelas terras da fazenda do meu avô, descobri, por acaso, escombros que pareciam restos de uma grande casa. Viam-se no local montes de carvão vegetal calcinado e cinzas petrificadas.
Argui o meu avô sobre a minha imprevista descoberta.
- Meu pai, seu bisavô, fez construir ali uma casa espaçosa, onde foi residir com 13 filhos, genros, netos e outros parentes. A casa era de madeira de lei, abundante na época da construção. As paredes de adobe. O chão cimentado. O teto coberto com as mais resistentes telhas já fabricadas no sertão.
Era uma casa simples, mas muito confortável; cercada de alpendres, forrada com tábuas de cedro. Árvores altas e de galhos frondosos davam sombra e frutos. Todos os quartos tinham “escapas” ou “tornos” onde se armava redes de dormir para solteiros. Apenas os casados dormiam em camas fabricadas lá mesmo e colchões de palha de milho, também de nossa confecção.
Em certa época, que a névoa da memória me impede de precisar, começaram a aparecer assombrações que apavoravam os moradores durante a noite. Os mais medrosos dormiam com lamparinas acesas. Todos nós ouvíamos, com frequência, gemidos lancinantes; correntes de ferro arrastavam-se na sala e nos corredores, sugerindo tratarem-se de espectros de escravos torturados ou sacrificados por nossos antepassados. Luzes misteriosas iluminavam, por instantes, os ambientes. Ouvia-se, nitidamente, o barulho de pratos, copos e talheres estatelarem-se no chão da copa e da cozinha, sem causarem dano. Assim, as noites naquela casa transformaram-se em um inferno. Parecia que o sobrenatural reunia-se em assembléia permanente para atormentar os moradores.
Decorridos cerca de dez anos, os ventos trouxeram notícias de um eldorado do cacau no sul da Bahia. Começou, então, o êxodo, a corrida para Ilhéus e Itabuna em busca da riqueza que se anunciava. Os meus irmãos e outros parentes, pouco a pouco, emigraram para lá. Nunca mais voltaram, nem mesmo a passeio, e nem sequer enviavam notícias. Esqueceram, sem dúvida, o rincão onde nasceram, cresceram e viveram felizes durante muitos anos.
As assombrações continuavam, apesar do, já agora, reduzido número de espectadores. Os espíritos decidiram continuar o espetáculo e atazanar a nossa vida. Deveriam pertencer a inimigos da família, há muito tempo falecidos.
Acrescentou: meu pai, já viúvo quase cego e sem família, decidiu ficar e morrer em sua propriedade. Ocorreu-lhe, então, a ideia de construir nova casa, bem menor do que a primeira, que é esta onde moramos. Depois ele ateou fogo e queimou a casa mal assombrada, calcinando ali, inclusive, o seu passado. Morreu logo depois, com a idade de 90 anos.
Passei a viver sozinho na fazenda, tendo por companhia alguns agregados e animais domésticos (dois cachorros e cinco gatos). Preparava minha própria comida. Por isso, resolvi me casar logo.
Eu tinha ficado noivo, recentemente, de uma moça, filha de um fazendeiro vizinho. Senti, porém, que não a amava, e rompi o compromisso.
Fiz, então, uma longa viagem em direção a um povoado que tinha fama de possuir muitas jovens dispostas a casar-se. Por acaso lá morava uma prima, em cuja casa fiquei hospedado.
Realizava-se uma festa de aniversário e eu fui convidado. Nessa festa eu conheci uma moça não muito bonita, mas simpática, e que exibia ar de nobreza pelas maneiras e postura que mostrava. Achei-a uma mulher singular, como o próprio nome, MARIA FABRÍCIA DA COSTA.
Com a rapidez de um relâmpago, apaixonei-me por ela e fui imediatamente correspondido. Dois meses depois, estávamos casados. A cerimônia das bodas foram cercadas de pompa e circunstância, pois a família dela era abastada. A grandiosidade da festa de casamento foi comentada no sertão por muito tempo. Sacrificaram-se cabritos, carneiros, bois, porcos e galinhas. Toda a comunidade, composta de mais de 500 pessoas, participou da comemoração. Após a cerimônia religiosa, os fogos de artifício iluminaram a noite, transmitindo admiração e gritos de alegria a todos os corações.
Realizou-se um grande baile na Praça Pública, com música estridente, tocada por uma pequena banda de uma cidade vizinha. Essa foi, sem dúvida, a noite mais feliz da minha vida.
Quando o astro-rei acordou e surgiu no horizonte irradiando vida e esperança, selei meu cavalo alazão e parti para minha fazenda, levando, como prêmio, a jovem esposa, na garupa do animal.
Viajamos todo o dia debaixo de um Sol abrasador, cujos efeitos não sentimos, por causa da embriaguez da felicidade.
Nas primeiras horas da tarde, chegamos à fazenda de um amigo, onde almoçamos e descansamos. Com os ânimos e as energias recuperadas, prosseguimos a viagem rumo à ventura.
A noite chegava sem pressa. As estrelas piscavam sua luz, imitando os vaga-lumes. Algumas delas davam a impressão que dançavam. Atingimos a cancela que dava entrada à propriedade. A casa ficava a 500 metros de distância. O meu espírito fervia de emoção devido à perspectiva da nova vida que se iniciava. Então, olhei na direção da casa e vi que ela se incendiava. Gritei: Valha-me Deus! A casa pegou fogo, perdi tudo. E, justamente, atribuí a culpa à minha ex-noiva, pois a família dela era rancorosa e vingativa.
Abri a cancela de um golpe vigoroso, esporeei o cavalo que estranhou aquele meu gesto não habitual; ele estremeceu e quase jogou a sua avó no chão. À medida que me aproximava, em velocidade, as chamas estiolavam-se. Quando o cavalo riscou no terreiro, estava tudo escuro e em silêncio.
Compreendi que se tratava de uma espantosa assombração. Não foi, juro, uma alucinação de minha parte, porque sua avó é testemunha daquele incêndio fantasmagórico.
O meu avô era um homem honesto, sério, amante da verdade. Pouco sorria e economizava as palavras e as idéias. Por isso, nunca duvidei da veracidade do seu depoimento, ainda mais porque durante muitos anos que ali residi fui também testemunha de inexplicáveis fenômenos, obviamente de origem sobrenatural.
Repetiam-se, na nova casa, as mesmas assombrações que aterrorizavam os moradores da casa antiga. Por muitas vezes, e durante anos seguidos, os meus avós sentiam a cama elevar-se e ficar suspensa no ar, como se braços vigorosos e invisíveis a sustentassem. Meu avô não confessava medo, mas apresentava sinais de nervosismo. Levantava-se, bebia um copo de água fresca da moringa de barro, dava umas voltas pelo alpendre e voltava a deitar-se, intrigado com o fenômeno. Que às vezes se repetia na mesma noite.
Ele era um homem corajoso, sempre pronto a enfrentar qualquer perigo, mas temia os fantasmas.
Eu próprio fui vítima de muitos fenômenos não explicáveis, quer na minha infância na fazenda, quer por minha vida inteira.
Naqueles saudosos tempos de fazendeiro, eu dormia em rede. Acordava, à noite, com mãos invisíveis balançando-me. As escapas que sustentavam a rede rangiam, produzindo um som semelhante a: rin, ron, rin, ron.
Provavelmente um espírito gracejador e impertinente me descobria e atirava para longe o meu lençol. O medo me fazia rezar o Credo que produzia no meu espírito uma sensação de proteção.
Muitas vezes eu pulava da rede e corria para o quarto dos meus avós, em busca de amparo, tendo os cabelos hirsutos pelo medo.
Aos dez anos de idade, deixei aquela casa mal-assombrada; aliás, com grande alívio, embora partisse triste em direção a um mundo desconhecido, deixando para trás um pedaço da minha ainda curta existência, cheia de emoções e de aventuras.
Objetivando continuar os estudos, fui morar com os meus pais em uma cidade litorânea, onde havia muitas escolas e até curso ginasial. Fui recebido pelos meus oito irmãos com curiosidade e nos primeiros dias me apodavam de “tabaréu”, hostilizando-me.
Um ano depois fomos morar na capital do Estado, que me pareceu tão grande e movimentada quanto a maior cidade da antiguidade, a Babilônia.
Minha mãe estava separada do meu pai, que desapareceu, e, sozinha, criou e educou os filhos.
E, por incrível que possa parecer, a casa alugada para nossa residência era também mal assombrada.

CRUZ-CREDO!



COBRAS VENENOSAS
 




                   



A nossa fazenda, situada no alto sertão sergipano, era extensa.
Ao norte, era atravessada por duas montanhas altas que, em forma de cunha, encontravam-se, como que para se comunicarem.
Um profundo riacho que marulhava fortemente nas épocas de chuvas as ladeava. O chão ou leito por onde escorriam as águas era matizado por pedras de várias cores e tamanhos. No verão, esse riacho secava e mostrava o seu curso calcinado pelo Sol e cortado de estrias, como se fossem cicatrizes.
Quando os invernos eram generosos, constituía uma festa para os nossos olhos ver-se, de longe, os paus-d´arco exibindo seu mostruário de flores amarelas. Destacavam-se, na pequena floresta que se formava, árvores belas e frondosas: jacarandás, umbuzeiros, cajazeiras etc.
Entre as duas montanhas havia um vale muito verde no inverno, onde pastavam, felizes e despreocupados, várias espécies de animais.
Sucediam-se pastos de gramíneas, destinadas à alimentação dos seus comensais.
Essa vegetação formava o “habitat” propício à proliferação de répteis, notadamente cobras, a maioria delas venenosas, tais como: jararacas, cascavéis, cobras-corais, jaracuçus pretas, caninanas e a temível cobra-cipó, que era fina, comprida e mimetizável; as suas vítimas definhavam, pouco a pouco, até a morte inexorável.
Frequentemente, uma revoada de urubus indicava o local onde se achava um animal morto, em decomposição, vítima da mordida de serpentes.
   Pergunto-me sempre: que forças poderosas e invisíveis me protegiam durante os anos em que estive à mercê daqueles répteis peçonhentos?
O perigo me rondava sempre. E vale a pena relatar os fatos mais marcantes e interessantes que me ocorreram naqueles tempos recuados da minha infância.
Meu avô disse-me que uma onça suçuarana rondava os pastos e já tinha devorado alguns animais que não se achavam protegidos pelas cercas de arame farpado, inclusive um boi avantajado. E como ele iria viajar, pediu-me para procurar os animais desgarrados, principalmente cabras e ovelhas paridas de novo, conduzindo-os para lugares seguros.
Embora morrendo de medo, eu percorria a região coberta pela mata, com esse objetivo, protegido apenas pelo meu cão fiel, Robalo.
Portava na bainha um facão quase da minha altura, com a ilusão de que poderia enfrentar o felino, na hipótese de um ataque. Pura infantilidade. A fera, certamente, levaria vantagem na luta contra mim e o cachorro e nos degustaria com grande satisfação.
Num certo dia ensolarado, para cumprir aquela missão, tomei uma trilha que começava no sopé da montanha situada à minha direita. Logo adiante, justamente em uma curva do caminho, a poucos centímetros dos meus pés em movimento, estendia-se, pachorrento, um vulto preto, enorme, que reconheci logo ser uma surucucu, tão venenosa quanto a cascavel. Instintivamente recuei de um salto, apavorado. Virei as costas com a rapidez de um raio e corri de volta à nossa casa, na velocidade de um campeão de maratona. Nunca mais passei por ali, temendo uma tocaia.
De outra vez, meti-me em novo apuro.
Dirigia-me ao açude para apanhar água potável, portando um pote de barro na cabeça, equilibrado por uma rodilha. No meio do trajeto, uma grande cobra caninana, muito verde, achava-se atravessada no meu caminho. Esperei alguns minutos, supondo que ela me visse e corresse, temerosa, para o mato.
Mas isso não aconteceu; ela não se mexia. Gozava o seu lazer, ou espreitava alguma vítima. Logo, logo, perdi a paciência e atirei uma pedra em sua direção; a pedra passou próxima à sua cabeça. Nada aconteceu. Parecia que a cobra me pedia paz. Atirei uma pedra maior que atingiu, com força, o seu corpo. Então ela disparou em minha direção. Eu não esperava essa sua atitude e estremeci de surpresa e pavor; derrubei o cântaro no chão, que se partiu em muitos pedaços. Acredito que esse acidente tenha sido a causa da minha salvação, assustando o ofídio. Sem olhar para trás, porque o medo não permitia, corri pra casa em disparada receando que, a qualquer momento, a cobra picasse um dos meus calcanhares que subiam e desciam acelerados, como as teclas de um piano tocado um maluco. A tranquilidade somente me voltou quando, de um salto, caí do outro lado da porteira e entrei em casa, fechando a porta. O meu coração batia tão forte quanto um sino de igreja chamando os fiéis para a missa. Muitos anos depois desse episódio, vim a saber que essa cobra não é venenosa, mas assusta.
De outra feita, meu avô apanhou a espingarda e foi caçar perdizes. Eu fui também. O meu protetor, Robalo, o cachorro mais inteligente e corajoso que jamais conheci, marchava, resoluto, ao meu lado.
   No campo, entre as moitas de capim, escondiam-se as codornas. Eu seguia, de perto, o meu avô. Porém, um pouco adiante, desviei-me para sondar uma pequena moita. Quando descia o pé para tocar no chão, recuei, não sei por qual motivo. O instinto, talvez. Vi, então, uma perigosa jararaca enroscada, pronta para o bote. Salvei-me milagrosamente.
Ainda hoje, sinto calafrios quando me lembro do perigo a que estive exposto uma certa noite. A escuridão vedava-me os olhos. Deitei-me em minha rede. Dormi. Acordei, inexplicavelmente, no início da madrugada, fato este que me era incomum, eis que tinha fama de dorminhoco. De repente, escutei o barulho de chocalhos. Reconheci-os de imediato e gritei apavorado: meu avô! Tem cobra no meu quarto.
Ele acendeu o candeeiro, apanhou uma acha de lenha e qual Sansão entrou no quarto e divisou, à meia luz, uma cascavel enroscada num canto da parede, debaixo do punho da minha rede. Matou-a, com a habilidade, valentia e experiência de sertanejo acostumado a enfrentar os mais variados perigos.
A cobra tinha doze anos, como indicavam os anéis incrustados na ponta do rabo.
As minhas desditas com serpentes se repetiam com frequência. Contarei mais.
Eu e meu avô encontrávamo-nos nas faldas de uma das montanhas que cortavam as terras da fazenda, cujo nome era Boqueirão. Procurávamos cabras paridas. O Robalo afastou-se de nós e a uns cinqüenta passos de distância começou a latir freneticamente. Afastei-me do caminho e fui ver de que se tratava, já desconfiado de algum perigo. O animal mirou-me, espantado e nervoso, como se me perguntasse alguma coisa, e passou a ganir. A vegetação era baixa, e eu pude ver entre as folhagens uma cobra descomunal, que logo reconheci. Gritei apavorado: meu avô, é uma jibóia! Evidentemente acovardado, pois tinha pavor de cobra, deixei-o com o cachorro e, em disparada, desci aquela montanha, subi a encosta da outra que ficava em frente; desci novamente e só parei no terreiro da casa. Ofegava.
Um par de horas mais tarde, meu avô chegava com o couro da jibóia dependurado nos ombros. A carne ele doou aos trabalhadores da fazenda, que se mostraram contentes com o presente.
Disse-me ele: mede doze palmos. Secou o couro ao sol e vendeu-o na feira do povoado.
Em outra ocasião, fui ao mato cortar lenha para o faminto fogão da minha avó. Deparei-me com uma árvore comprida, grossa e seca que se estendia numa clareira, como um morto no necrotério. Um enxame de abelhas indicava que ali havia uma colméia. Desci do ombro o machado que portava e iniciei, com golpes vigorosos, o corte da barriga da árvore. Abri uma frincha, por onde pretendia introduzir as mãos para colher mel. A fenda era estreita. Apliquei outras machadadas para alargar o orifício. Nisso, uma enorme cobra amarela, para mim desconhecida, enfiou a cabeça grossa pela abertura; olhou ao redor, assustada; em seguida botou para fora da boca uma língua fina que tremia como um doente com crise de malária. Começou a arrastar-se, morosa, para fora do cortiço. Quase paralisado de susto, fui salvo, mais uma vez, pelo instinto de conservação ou pela sorte; larguei o machado e corri para casa na velocidade de um cervo.
No dia seguinte, voltei ao local com meu avô, para recuperar o machado e levar o cortiço para o nosso apiário.
O mel era ótimo.
E para encerrar a revelação dessas aventuras, conto mais um episódio.
Uma espécie de cobra, que diziam não ser venenosa, entendia de subir no telhado da casa para perseguir lagartixas, o seu prato predileto. Mas, por vezes, algumas delas, mais desastradas, perdiam o equilíbrio e caíam na rede, por cima de mim, à noite, no escuro. Com a mão eu agarrava a cobra nojenta e atirava-a para longe, embora tremendo de medo.
Até hoje sinto a espinha gelar-se, ao lembrar-me de tudo isso.

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