A CAIPORA
Os dicionaristas, homens encerrados em
gabinetes com ar refrigerado, provavelmente nunca penetraram numa floresta.
Mas, apesar das suas limitações no conhecimento do assunto, definem a
“caipora”, assim:
“CAIPORA – Ente fictício que habita as
florestas e dá azar a quem a encontra”
“SACI-PERERÊ – Entidade imaginária do
folclore brasileiro, pretinho de uma perna só, que arma cilada aos viajantes no
meio do mato”.
Acredito que caipora e saci-pererê sejam
uma só entidade, segundo aprendi, já adulto, quando estudei os mistérios da
QUIMBANDA, por necessidade cultural. São eles, em verdade, “exus”, que vivem
nas florestas e que deixam em paz as pessoas que lhe dão presentes, nas
encruzilhadas, rolos de fumo, do que mais gostam.
As definições citadas são quase perfeitas.
Estão errados, no entanto, os termos “ente fictício” ou “entidade imaginária”.
A caipora existe, eu juro!
Para alicerçar essa afirmação, registro
aqui os fatos estranhos que aconteceram comigo, na infância.
Eu residia com meus avós numa fazenda
muita extensa, cortada por montanhas, rios e florestas.
Numa tarde muito iluminada pelo astro-rei
que percorria sua órbita sem pressa, embrenhei-me na mata, com três valentes
cachorros, à procura de cabras e ovelhas paridas de novo, fugitivas da fazenda
por aberturas feitas pelo tempo nas cercas de arame farpado.
Nesse dia não tive sorte.
A missão foi um fracasso.
Encontrava-me distante da nossa casa,
adentrando na floresta, justamente no ponto onde as duas montanhas, que
cruzavam a propriedade, encontravam-se, dando a impressão de que se
cumprimentavam com mãos invisíveis.
O Sol generoso já havia atingindo a linha
do horizonte e começava a recolher seus últimos raios de luz. À vista das
primeiras sombras que desciam do céu, a prudência aconselhou-me a regressar,
principalmente porque nuvens escuras aproximavam-se, anunciando trovoada.
Chamei os cachorros pelos seus nomes e
iniciei o caminho de volta.
O local onde me achava era familiar,
porém, repentinamente, senti-me confuso como se estivesse hipnotizado, ficando
incapaz de identificar o caminho que deveria tomar.
Os cachorros corriam em círculo, ao redor
dos arbustos. Tinham os rabos recolhidos e os pelos hirsutos; latiam
nervosamente e ganiam aflitos, como se estivessem sendo chicoteados por
entidades invisíveis.
A cena insólita, que eu presenciava pela
primeira vez na vida, durou alguns minutos.
Os meus conhecimentos para lidar com
aquela situação estranha eram nulos; entretanto, recordei restos de depoimentos
ouvidos de velhos e experimentados sertanejos que nos visitavam, e deduzi que
estava sendo perseguido pela caipora ou saci-pererê.
Como sempre procedia nos momentos de
perigo, principalmente os de natureza sobrenatural, rezei o CREDO, em voz alta,
repetidamente, entrecortando as palavras com meu choro.
Deu resultado.
Voltei logo ao estado da razão.
Estimulado pelo medo, comecei a correr. Os
cães me seguiam arrepiados e rosnando, revelando terror pela surra que
sofreram.
Daí em diante passei a seguir o conselho
dos caçadores, as vítimas preferidas das brincadeiras da caipora, que
consistia, como já disse antes, em colocar fumo de rolo nas bifurcações do
caminho.
Este conto poderia terminar aqui, mas não
posso deixar de divulgar, a propósito, a mais fantástica história de caipora de
que jamais tive conhecimento, a qual me foi contada, repetidas vezes, pelo meu
avô.
Relutei comigo mesmo se deveria registrar
esse acontecimento singular, porque parecerá aos sábios e aos incrédulos um
relato inverossímil, podendo, inclusive, prejudicar a credibilidade do conto
inicial, sobre cuja autenticidade eu “ponho as mãos no fogo”.
Contudo, levando em consideração o fato de
que o meu avô mantinha no sertão uma reputação ilibada, de homem sério, que não
dava asas à mentira, eu achei correto narrar a esquisita, mas interessante
história que ele jurava haver acontecido com um seu cunhado, irmão da minha
avó, batizado José.
Esse meu tio era caçador profissional.
Especializou-se na caça aos caititus, uma espécie de porco-do-mato, cuja carne,
muito saborosa, tinha grande aceitação entre os ávidos consumidores. O seu
couro era aproveitado na fabricação de cinturões e de sapatos, e dava-lhe boa
renda.
Os porcos, também conhecidos como
“queixadas”, habitavam as matas das montanhas que a natureza fez surgir naquela
região sertaneja.
O corajoso caçador, para atrair as suas
vítimas, abria com a foice uma clareira no centro da mata, onde amarrava, como
iscas, pequenos animais – ovinos ou caprinos. Acendia uma fogueira feita de
gravetos, para iluminar o ambiente e chamar a atenção dos convivas.
Nas árvores situadas ao redor da clareira
ele armava a sua rede, bem no alto, onde ficava deitado, aguardando a chegada
das valiosas presas que pretendia matar com sua poderosa espingarda de
cartuchos. Essas caçadas foram pródigas durante muitos anos.
Entretanto, a desgraça cedo ou tarde
aparece.
Em determinada noite muito escura, após
terminados os seus rotineiros preparativos de caça, o meu tio, deitado na rede,
sua antiga companheira de aventuras, aguardava os acontecimentos.
De súbito, ouviu fortes grunhidos e surgiu
na clareira uma manada de porcos que atacaram a isca, um cabrito, dilacerando-o
em poucos minutos com suas presas amoladas.
O caçador sentou-se na rede e apontou sua
arma em direção aos animais. A espingarda pipocava, sem cessar; já havia gasto
a maior parte de munição sem atingir um só animal.
Caçador experiente que ele era, desconfiou
logo de que estava sendo prejudicado pela caipora. Embora fosse homem
destemido, corajoso, sentiu na espinha um friozinho de medo. Já era início da
madrugada. Para seu espanto, estourou uma gargalhada que foi ouvida em todo o
chapadão da montanha e numa voz estridente e cavernosa a Caipora gritava
repetidamente: - Vai-te embora bobo, hoje você não mata nada.
O ti José, apavorado, tendo os pelos
arrepiados como um porco-espinho, saltou da rede no chão, segurando a
espingarda e abandonou no local a rede e outros objetos de caça.
Fugiu em disparada, arriscando a vida nos
perigos do trajeto, por causa da escuridão.
Nunca mais ele caçou e morreu um par de
anos depois.
Finalmente, aconselho aos ilustres
organizadores de dicionários a reverem os seus conceitos e definições sobre a
caipora ou saci, pois são “exus” da floresta que realmente existem.
CARNAVAL no
SERTÃO
Década de 1930.
No jornal “O Globo” de hoje, leio noticiário sobre os carnavais, principalmente
os carnavais do Rio de Janeiro, essa metrópole ao mesmo tempo céu e inferno.
E ao meu cérebro
acorreram pensamentos memorialistas.
Lembrei-me de
que no meu livro “Memórias do Sertão” eu não disse uma palavra sobre o carnaval
que acontecia no povoado Samambaia, essa Babilônia da minha infância!
Como seria a
festa numa comunidade que contava umas 500 almas e talvez 1.000 visitantes?
Faço um enorme
esforço de memória para me recordar dos acontecimentos carnavalescos nos idos
daquela época.
As fantasias
eram pobres e sem grande imaginação.
Lembro-me das
mais comuns:
Homens
travestidos de mulheres, máscaras e índios.
As brincadeiras
mais comuns praticadas pelos foliões consistiam no uso de um urinol que o
fantasiado, ou grupos de fantasiados, atiravam ao público: Confetes, balas
(doces), etc., fingindo que o conteúdo fosse excrementos.
Eu tinha um medo
terrível dos mascarados, a quem também se conhecia por “caretas”.
O carnaval de
rua se limitava ao que foi dito.
Havia, contudo,
bailes de carnaval nas residências das famílias melhor afortunadas, inclusive
na casa de meu avô. Estandislau Carlos Borges de Almeida, um dos fazendeiros
mais conhecidos e respeitados daquela região.
Meu avô me
contava as estranhas histórias que aconteciam durante o reinado de Momo.
Lembro-me de poucas.
Um homem
desconhecido na localidade foi assassinado com arma branca por um grupo de
mascarados trajando vestes femininas.
Outro mascarado
descobriu a esposa traindo-o, e para “lavar” a honra matou o casal traidor.
Mascarados
invadiam as residências para comer e roubar.
Moças eram
estupradas.
O pequeno
destacamento policial via-se impotente para manter a ordem e a paz.
Agora, ponho-me
a “matutar” e compreendo que não é novidade a violência que se verifica nos
carnavais atuais.
A violência
sempre existiu, porque o homem é o mesmo animal, ontem ou hoje.
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