UM
SERTANEJO EM PARIS
Todo mundo sabe que sertanejo é o indivíduo que
nasce e vive no sertão, zona do interior brasileiro.
Como está dito em outros pontos deste livro, o
autor desta crônica nasceu no coração do sertão (Sergipe), no ano de 1924. Dez
anos depois disse adeus aos seus pagos indo residir na cidade de Boquim. Logo
depois, os meus pais foram morar na capital, Aracaju, que na época tinha menos
de 50.000 habitantes.
Estudei em colégio particular. Em seguida, fiz
vestibular para a única escola de curso superior existente em Sergipe, àquela
época: Escola de Comércio Conselheiro Orlando.
Em 1945, numa solenidade inesquecível, recebi o
cobiçado diploma de Contador.
Em 1950 a empresa de Petróleo ITATIG, da qual
eu era Contador, me transferiu para a Matriz, no Rio de Janeiro.
Em 1951 ingressei num banco carioca como
Contador-geral, embora nunca tivesse sido bancário.
Farto da organização bancária onde trabalhava
até doze horas diariamente e ganhava pouco, fui selecionado para exercer o
cargo de Sub-Contador da Metro Goldwyn Mayer do Brasil.
Como dito em oura crônica, em 1957 ingressei na
PETROBRAS, onde permaneci por vinte anos.
Aposentado, ingressei, como Auditor, numa Trading-Company
estatal no ano de 1977.
Num determinado ano da década de 1980 viajei
para a França com a missão de auditar a contabilidade da filial existente nesse
país.
A contabilidade, a cargo de um Contador francês
que eu julgava tão gênio nessa arte como seu compatriota RODIN, na escultura,
causou-me decepção.
Ainda na PETROBRAS eu estudava a língua
francesa durante muitos anos. Na Escola de Comércio eu havia estudado o francês
comercial.
O meu maior interesse no estudo do belo idioma
de Victor Hugo teve dois objetivos:
1º - Estudar a contabilidade francesa;
2º - Ler os livros dos grandes escritores e
poetas franceses no original.
Como eterno interessado no estudo da história
universal, eu havia estudado durante muitos anos a vigorosa história desse país
civilizado, desde os tempos da Gália. Fui ardoroso adepto da Revolução Francesa
e de Napoleão Bonaparte, cujo túmulo visitei em Paris.
Eu tinha a França como a minha segunda pátria.
Ao pisar, pela primeira vez, o seu solo, para
mim sagrado, senti fantástica emoção que durou nos vinte dias de permanência. A
minha pressão arterial subia e descia como um elevador.
Quando eu entrava num restaurante e observava
as mesas repletas de garrafas de vinho, lamentava a má situação da minha saúde,
pois o vinho foi sempre minha bebida preferida.
Os franceses tomavam vinho. Eu bebia leite. Mas
como era gostoso o leite da Normandia!
Retorno ao ponto principal desta história.
O sistema de escrituração contábil das
operações da filial brasileira praticado pelo colega francês não correspondia à
minha expectativa.
Os lançamentos eram feitos num “mapa”, como se
diz na gíria contábil, sem históricos das operações. Constava apenas a
indicação das datas dos lançamentos e dos números dos documentos.
Tive dificuldade de auditar as contas, pois me
via obrigado a consultar os documentos no arquivo. O sistema de escrituração
era primário e em desacordo com aquilo que eu havia aprendido nos livros de
contabilidade franceses.
As funcionárias responsáveis pela escrituração
não eram formadas em contabilidade. Registravam os fatos contábeis obedecendo
as instruções do Contador, porém não sabiam prestar as informações que eu
solicitava.
Considerando a confusão estabelecida e diante
da minha necessidade de compreender e verificar as práticas adotadas, o gerente
sugeriu-me visitar o Contador, para que ele afastasse as minhas dúvidas. Não
foi uma boa iniciativa.
Eu relatei a ele as minhas dificuldades para
realizar o meu trabalho. Acrescentei que havia estudado a contabilidade
francesa que preconizava, da mesma forma que a contabilidade brasileira, a
manutenção dos livros Diário e Razão, não existentes na filial.
O homem exasperou-se e se recusou a dar-me
informações.
Decepcionado, prossegui nos meus trabalhos com
as armas da teoria e da prática contábil adquiridas no curso da minha longa
vida profissional.
No meu relatório para a Matriz, no Rio de
Janeiro, eu disse que a escrituração contábil era uma escrituração de quitanda.
O gerente ignorante da Ciência Contábil, abespinhou-se e tomou a defesa do
Contador. E como era amigo de um Ministro brasileiro muito importante
queixou-se de mim ao presidente da Trading.
O presidente telefonou-me e antes que eu dissesse
alguma coisa, pois o relatório ainda se achava em trânsito para o Brasil,
disse-me: “o gerente reclamou do fato do Auditor haver ofendido o Contador
francês ao haver afirmado em seu relatório que a escrituração contábil da
filial se assemelhava à praticada nas quitandas do Brasil”.
Eu era aposentado da PETROBRAS e não receava
perder o emprego.
Confirmei o dito relatório e solicitei-lhe
aguardar o seu recebimento. Ignoro o que se passou em seguida, mas o gerente
foi chamado imediatamente à Matriz e não regressou à França. Entretanto, não
sofreu qualquer punição pelos seus desmandos na filial por mim apontados.
Terminados os trabalhos, permaneci em Paris por
mais quatro dias antes de regressar ao Brasil.
No meu primeiro dia em Paris, livre para
passear, com um guia na mão e um mapa da cidade, iniciei uma maratona
turística.
O meu hotel ficava longe do centro da cidade.
Apanhei um taxi. No banco dianteiro estava “sentado” um enorme cão policial.
Era quase meio dia. Pedi ao robusto e
mal-encarado motorista para deixar-me no Arco do Triunfo.
Tive a infeliz ideia de percorrer a pé o
trajeto desse histórico monumento até a distante Praça da República de onde o
meu hotel ficava próximo. Essa foi uma das minhas mais absurdas iniciativas.
A caminhada seria de uns doze quilômetros.
Segurando nas mãos um coração emocionado,
comecei a percorrer a famosa avenida “des Champs-Élysées”.
Aqui e acolá eu parava à frente de um monumento
para admirá-lo e ler os dizeres em francês.
Visitava as lojas mais bonitas que ia
descobrindo.
Quando as luzes da cidade começaram a
acender-se penetrei na conhecida “rue de Rivoli”, paraíso de bijuterias. Fiz
umas compras.
A noite chegava e eu ainda estava distante do
hotel.
Pensei tomar um táxi, sem resultado. Eu
ignorava como deveria proceder para usar o rádio táxi que seria minha salvação.
Eram mais ou menos 20 horas quando começou a
chover torrencialmente. O céu escureceu. As ruas completamente vazias. O
comércio fechado.
O meu mapa molhou-se e joguei-o fora. O guia
também perdeu a utilidade. Estava desorientado.
Carregava no bolso duzentos dólares e temia ser
assaltado.
Na encruzilhada de uma rua um tanto escura
deparei-me com um sujeito nem mal nem bem vestido. A tez morena, aparentando 30
anos de idade e forte como um rinoceronte. Procurei falar-lhe num bom francês,
pausadamente. Pedi orientação para chegar à Praça da República, uma praça
enorme para a qual convergem muitas ruas.
O estranho indivíduo me disse: a praça é muito
longe. Pague o Metrô e se prontificou a me acompanhar até a estação. O meu bom
senso acendeu a luz vermelha da desconfiança. Agradeci a sua gentileza e
afastei-me apressado. Não segui a rua indicada. Tomei uma outra paralela e mais
adiante retomei a artéria que poderia levar-me ao destino.
A chuva diminuiu de intensidade. Eu estava
encharcado e sentia muito frio.
Aliviado da presença daquela figura humana que
me parecia o fantasma de algum bandido francês da idade média, prossegui minha
estafante jornada. As pernas doíam, eu estava “fatigué”.
O relógio marcava 23 horas quando compreendi
que me achava completamente perdido. Um sertanejo em Paris em plena noite
escura e chuvosa!
Não via gente naquelas ruas mal iluminadas e
desertas.
Muito arrependido da minha tola e arriscada
decisão, temia um assalto a qualquer momento.
Mas a sorte não havia me abandonado.
Cheguei à frente de um edifício de apartamentos
justamente quando uma senhora idosa digitava os números mágicos que abririam a
porta de entrada. Para não assustá-la, fui dizendo: minha cara senhora, preciso
de sua ajuda. Eu sou turista brasileiro e estou perdido. Procuro a Praça da
República. Ela deixou a digitação, virou-se em minha direção e respondeu:
“daqui até a praça são mais dois quilômetros. Siga esta rua, dobre à direita e
depois à esquerda e siga em frente”. Agradeci-lhe efusivamente e prossegui a
minha jornada com gosto de aventura.
A chuva continuava, embora enfraquecida.
Era uma hora da manhã quando deparei-me com o
esplendor da praça histórica e apossou-se de mim uma alegria semelhante à do
arqueólogo alemão quando descobriu as ruinas de Tróia.
Cerca de 14 ruas desembocavam naquela praça de
área descomunal. Qual seria a rua do meu hotel? Felizmente lembrei-me do nome:
rua Meslay. Nunca esqueci.
Cheguei a uma banca de jornal para perguntar
onde ficava essa rua. O jornaleiro, forte como um Zebu do meu sertão, estava
recebendo jornais e não me dava atenção.
Junto à banca estava uma jovem bem vestida e
linda como Vênus. Os olhos azuis como o céu. Sabendo-me estrangeiro, ela me
informou: “a rua Meslay é esta aqui”.
Agradeci-lhe copiosamente. Exausto como um
vencedor das olimpíadas entrei no hotel, apanhei a chave do meu apartamento,
comi frutas, bebi muita água, tomei uma ducha quente e caí pesadamente na cama
confortável, feliz com um deus.
Dormi até o meio dia. Ainda hoje me recrimino
por aquela minha estupidez que me serviu de lição nas viagens futuras.
E tudo isso aconteceu porque não observei um
ditado do meu avô, que dizia: “em
|
terra
estranha pisa-se no chão devagar”.
Ao levantar-me aluguei um taxi. E assim
conheci, em poucos dias, muita coisa da velha Paris. Naqueles momentos de
angústia, eu recordava as minhas aventuras e desditas no sertão do meu país ao
tempo de minha atribulada infância.
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