Aracaju,
19-7-2017.
Prezados
leitores:
Literatura
Desejo conversar com vocês, a respeito do meu
livro CONTOS do SERTÃO, publicado na internet pela editora AMAZON.
O livro tem 441 páginas; 57 contos verídicos
ilustrados a cores, e mais 40 fotografias coloridas de imagens do sertão.
Ocorreu-me a ideia de publicar os contos neste
blog, única forma de divulgação sem custo para vocês.
Recentemente, divulguei o conto A APARIÇÃO.
No início
deste blog consta o conto: A GRANDE SECA.
Divulgo, hoje, a história do meu cavalo ALAZÃO.
Creio que este conto seja o mais fantástico sobre a história de um cavalo.
Ressalvo que todos esses contos são histórias
reais, uma vez que não sou ficcionista.
A Editora TABA Cultural publicou, impresso,
esse livro. Apenas 50 exemplares, esgotados.
À vista desse livro, intelectuais do Estado da
Bahia me compararam ao contista russo Tchecoff, considerado o mais brilhante
contista do mundo.
Nesse blog divulgarei, também, minhas poesias,
crônicas, etc.
Edson Valadares
ALAZÃO
Alazão era um cavalo inteligente, brioso,
robusto e heroico.
Pertencia a Estandislau Carlos de Almeida,
meu avô.
Entretanto, era meu amigo e companheiro.
Se fosse humano, dir-se-ia ser gênio.
Alazão era um belo animal. Alto, fogoso e
elegante, possuindo uma estrela branca desenhada na testa larga, sem dúvida um
sinal de nobreza da sua raça.
Quando tangia uma boiada e uma rês
desgarrava-se do rebanho, o Alazão, mesmo sem comando do vaqueiro que o tivesse
montando, arrancava em disparada, rodeava o fugitivo e obrigava-o a integrar-se
ao conjunto.
Para montá-lo, valia-me de diversos
expedientes. Se estivesse perto da minha casa, utilizava um tamborete. Em
outros lugares, eu era obrigado a subir em pedras ou ribanceiras elevadas,
galhos de árvores, cancelas ou quaisquer elevações que me permitissem galgar o
lombo daquele gigante.
Embora de caráter arisco, tornava-se dócil
comigo, talvez porque eu o tratasse com carinho. Montado nele, sentia-me tão
seguro quanto um “cossaco” e ousava atravessar manadas de gado onde sempre
encontravam-se espécimes de “maus bofes”, violentos, prontos a atacar homens ou
animais com seus enormes chifres, mesmo sem motivo.
Certa feita fui buscá-lo no pasto, que lhe
servia de residência, a pedido do meu avô que ia viajar pelo sertão. Coloquei o
cabresto na cabeça volumosa do cavalo e montei-o em pelo.
Atravessamos um riacho sem água. O animal
levantou as patas dianteiras para subir a ribanceira. Nesse movimento,
escorreguei do seu dorso e caí debaixo da sua frondosa barriga. Percebendo o
ocorrido, graças ao acurado instinto, e pressentindo o perigo que eu corria,
ele estancou e ficou imóvel. Levantei-me rápido, sentindo dores, por causa da
altura da queda. Subi à margem do córrego e, numa crise de choro, misturado de
alegria, abracei o pescoço varonil do cavalo e afaguei-lhe a cabeça,
agradecido.
Essa sua atitude inteligente e protetora
evitou que suas enormes patas traseiras, providas de ferraduras, me
amarrotassem.
Porém, a maior façanha desse anônimo herói
do sertão – entre muitas outras acontecidas ao longo dos vinte anos de sua
existência – está gravada, a ferro e fogo, nos subterrâneos da minha mente para
sempre.
Diz respeito a uma viagem fantástica que,
juntos, empreendemos, como uma epopeia.
Nessa ocasião, nove anos de idade me
interpelavam.
Fui passar férias com minha mãe e irmãos
que residiam em Boquim, cidade distante da fazenda, possivelmente uns quarenta
quilômetros.
Ali demorei um mês, e para retornar,
peguei carona em um caminhão e desci em uma vila pitoresca a vinte quilômetros,
cujo nome jamais me escapou, apesar do tempo recuado: Samba. Ali era o feudo
onde residia o clã de minha avó, cujos sobrenomes eram Almeida, Costa e Carlos.
Tudo pertencia a seus parentes: fazendas, sítios, casas residenciais e de
comércio, farmácia, padaria, etc.
Hospedei-me no sítio de uma tia viúva,
onde, para minha surpresa, estava o Alazão, enviado por meu avô para me
conduzir à fazenda. Eu não conhecia os caminhos e as veredas que deveria
percorrer e fiquei muito receoso por não acreditar que o cavalo fosse capaz de
me guiar, com segurança até lá, cobrindo uma longa distância, e devendo
atravessar região de difícil topografia, como tabuleiros rasos, onde muitos
caminhos se bifurcavam, podendo confundir até viajantes experimentados. Havia,
ainda, no trajeto, montanhas escarpadas, rios e florestas.
Contudo, afastei do espírito essas
preocupações. Eu confiava naquele cavalo digno de pertencer a algum Deus do
Olimpo.
Era noite de lua cheia. Selei-o e montei
confiante. De imediato, afrouxei as rédeas para indicar-lhe que caberia a ele a
iniciativa de escolha do caminho a seguir e o ritmo da andadura.
Nunca atinei sobre o motivo daquela viagem
noturna quando o bom senso aconselharia aguardar o nascer do Sol. Provavelmente
seria por causa do calor durante o dia. O certo é que partimos cerca da
meia-noite, sem pressa de chegarmos ao destino. O cavalo deu os primeiros
passos, devagar, como se hesitasse. As pisadas dos cascos protegidos por
ferraduras, no chão ressequido, produziam ruídos secos que ressoavam nos meus
ouvidos, assim: Toc... Toc... Toc... Toc...
Atravessamos a vila, onde meus parentes
estavam desmaiados pelo sono, esquecidos das suas obrigações e dos seus problemas
cotidianos. Avançamos por um caminho largo que, aos poucos, ia-se apertando,
ora desaparecendo para reaparecer adiante. Cruzamos sítios povoados de árvores
frutíferas, principalmente mangueiras frondosas carregadas de flores e de
frutos verdes, em maturação, para consumo durante a comemoração do Natal, cuja
data se aproximava.
Transpassamos diversas fazendas e vimos
muitas reses, de cores e tamanhos variados., deitadas às margens dos açudes.
Algumas vacas dormiam. Outras, acordadas, espanavam o corpo com o rabo para
espantar mosquitos insolentes que as incomodavam. Outras, ainda, ruminavam,
produzindo ruídos pelo triturar dos dentes. Uma vaca preta, muito gorda,
ostentando na testa, orgulhosa, uma estrela branca que brilhava por causa dos
reflexos do luar, mugia tristemente, sem dúvida com saudade do bezerro preso no
curral.
Passei à frente da casa de dois andares
pertencentes a um fazendeiro rico, toda pintada de branco, as portas e janelas
azuis. Mais adiante avistei, a curta distância, dois cavalos brancos como neve
trotando paralelos e sozinhos, através da campina. Para onde iriam com aquela
pressa? Fiquei muito admirado daquela visão bizarra e inesperada.
Emocionado com o desfile daquelas cenas ao
vivo, como se estivesse assistindo a um filme cinematográfico, eu e minha
cavalgadura prosseguíamos nossa emocionante jornada.
Mais adiante, três caminhos de largura
semelhante, bifurcavam-se em desafio ao Alazão, mas ele, sem hesitar, e para a
minha admiração, rumava pela estrada certa, como se estivesse orientado por
radar. Sem minha sugestão e por sua própria iniciativa, estendeu as passadas,
aumentando a velocidade numa escala que achou conveniente nas circunstâncias.
Após uma hora de marcha, aproximadamente,
atingimos uma região deserta, silenciosa.
E então vislumbrei, ao longe, um vulto que
se aproximava veloz. O nosso satélite noturno, profusamente iluminado,
libertou-se de uma nuvem escura que passava vagarosamente e projetou um clarão
inesperado sobre a estrada. Constatei tratar-se de um cavaleiro e estranhei
encontrar naquele local e àquela hora tal indivíduo, vestido de mistério. Um
frenesi de medo percorreu a minha espinha, em toda a sua extensão, mas
esforcei-me para não demonstrar ao desconhecido viajante o meu temor.
O sujeito, de cor branca, era jovem,
aparentando vinte anos; de estatura média, mas corpulento e mal encarado. Usava
chapéu de couro e trajava-se modestamente. Os pés descalços. Montava um cavalo
castanho, alto, gordo e bonito, possivelmente roubado.
Como é de praxe naquelas bandas, dei-lhe
“boa noite” sem ouvir a delicadeza da resposta, o que significava um mau sinal.
Felizmente o intruso da madrugada não me deu importância e seguiu,
tranquilamente, o seu caminho.
Após vencidos vários quilômetros, apareceu
à nossa frente um extenso e fantasmagórico tabuleiro, que, sob a luz intensa e
prateada da Lua cheia parecia um imenso lago, de água serena, mas pronto a nos
afogar se ousássemos atravessá-lo. Cientes de que aquela visão era apenas uma
ilusão de ótica, prosseguimos.
A vegetação era típica, composta
principalmente de capim silvestre. Aqui e ali surgiam, como sombras, cajueiros
anões, denominados cajuís, porque a
sua fruta era pequena em relação ao conhecido caju. As corujas proliferavam e
sob a influência da claridade lunar emitiam repetidos pios agourentos que
abalavam o meu espírito.
Quando atingimos o centro daquele planalto
prateado, o corajoso cavalo, embora veterano de viagens noturnas, estancou
assustado, soprando as narinas. Essa sua atitude insinuava que estava vendo
algum ser sobrenatural. Começou a escavar o terreno arenoso, abrindo buracos.
Recusou andar e mexia, nervosamente, as enormes orelhas, sinal de que estava
temeroso.
Desmontei.
A minha memória despertou e lembrou-me que
se comentava no sertão que essa raça de quadrúpedes possuía qualidades de
vidente. Um calafrio de pavor sacolejou o meu físico, e todos os cabelos
eriçaram-se. Com o objetivo de recuperar a coragem e espantar os maus espíritos
que pareciam estar presentes, naquele momento, rezei o credo, em voz alta, audível
a longa distância, e quase chorando.
Passados alguns minutos dedicados à
perplexidade, procurei descobrir o motivo daquele estranho comportamento do meu
“Pégaso”.
Lancei a vista naquela mansidão plana e
embora tivesse os olhos embaciados pelo intenso brilho da Lua, divisei, ao
longe, um vulto nebuloso que dançava. Parecia um ser humano, vestido de branco.
Ou seria um fantasma?
Reuni, em segundos, toda a coragem dos
meus antepassados, e segui o caminho, arrastando o cavalo pela brida, apesar da
sua forte resistência. Ao aproximar-me do mistério, constatei que se tratava de
uma folha revirada e aveludada de um arbusto, que brilhava sob o reflexo da luz
prateada da Lua e bailava tangida pela brisa. O cavalo permanecia assustado,
mas, resolvido o enigma, compreendeu que não se tratava de coisa do outro mundo
e concordou no prosseguimento da nossa extraordinária jornada.
Montei-o novamente, e ele acelerou os
movimentos, iniciando um trote, para recuperar, sem dúvida, o tempo perdido.
Mais adiante findou o tabuleiro e nos
deparamos com uma montanha alta, coberta de árvores. Subimos a encosta e
atingimos um ponto onde passava um rio largo e pedregoso, felizmente com pouca
água; e, de imediato, reconheci tratar-se daquele mesmo rio que alguns anos
antes quase me levara prematuramente à eternidade.
O luar ainda era intenso, por falta de
nuvens, mas a aurora já remetia seus raios dourados para avisar que a chegada
do dia estava próxima.
Então ouvi um tropel vigoroso à
retaguarda. Desconfiado de que poderia se tratar de bandido, de touro bravo
extraviado ou mesmo de lobisomem, entidade que a crença popular jurava existir,
desviei-me da estrada e me escondi atrás de um arbusto espesso, localizado a
alguns passos de distância.
A “coisa” passou trotando. Não consegui vê-la.
Deixei escorrer alguns minutos e, preocupado, reiniciei a viagem. Imitando os
batedores índios, examinei, atentamente, o leito da estrada, forrado de areia
fina. Não havia rastro. Novamente arrepiei-me de medo do desconhecido.
O Sol salvador surgiu logo no horizonte,
espantando os fantasmas e os meus temores.
Descemos a montanha, por onde várias
veredas nos convidavam a percorrê-las. O inteligente animal, para minha
surpresa, escolhia sempre a vereda correta. Enfrentamos mais alguns perigos
dignos de registro. Numa curva do estreito caminho de descida da serra, o
cavalo estancou de repente e recuou apavorado, quase me derrubando. Uma cobra
enorme, talvez uma jiboia, estava atravessada na estrada, dormindo, e exibindo
no ventre o volume de alguma presa que engolira. Por sorte minha, o cavalo
andava devagar, precavido, temendo as pedras escorregadias e os buracos que se
exibiam no solo, entrando no mato e saindo adiante.
De momento, o caminho, ou melhor dizendo,
a vereda, vencida pela selva, desaparecia, confundindo por segundo o meu guia,
sem resultado.
Em outro ponto, mais à frente, nos
desviamos novamente, para contornar uma outra cobra que estava esticada, como
roupa num varal, entre as forquilhas de duas árvores que se defrontavam à beira da vereda, numa altura
equivalente ao meu pescoço, montado no cavalo.
Atravessamos centenas de poças d’água,
fundas e rasas, armazenadas pelas chuvas que caíram na semana anterior, as
quais dificultavam a nossa marcha.
Ao atingirmos o sopé da montanha,
começamos a percorrer um prado verdejante. Criamos alma nova quando vimos
fumaça libertada pelas chaminés das casas fugindo em jatos em direção ao
espaço, e estiolavam-se por força dos ventos que sopravam, indicando a presença
humana.
Finalmente, atingimos um lugar que era
familiar.
Um grito estridente de alegria estourou no
meu peito, pois estava perto da segurança do lar.
Ao ultrapassar uma curva do caminho, eis
que surge à nossa frente, a cancela da fazenda, que parecia, graças aos
revérberos dos raios do sol e à nossa imaginação, pintada de ouro.
Era quase meio-dia. O astro-rei enviava à Terra
uma chuva de raios brilhantes que se divertiam espantando as sombras que
descansavam na folhagem da vegetação.
Abri a cancela. As dobradiças enferrujadas
pela ação do tempo rangeram, como os dentes de uma engrenagem sem lubrificação.
Libertei a cancela que bateu com força no robusto moirão de madeira de lei,
produzindo forte estalido, como se comunicasse a nossa chegada.
Ultrapassada a cancela, o cavalo relinchou
estrondosamente, como se estivesse comemorando o sucesso da viagem. E
adivinhando o meu pensamento, embora extenuado da viagem e faminto, disparou em
alta velocidade, como um foguete, em direção à casa da nossa fazenda, que
ficava a quinhentos metros de distância. Estancou à frente do alpendre,
produzindo barulho que lembrava a freada de um carro.
Desmontei, jorrando alegria pelos poros.
Tirei a sela e outros apetrechos das costas do animal. Imediatamente
gratifiquei-o com um banho de água fria, tão merecido pelo herói. Dei-lhe água
para beber e uma substanciosa ração de milho e sal.
A família surgiu no alpendre, risonha e
feliz. Tínhamos visitas. Todos eles, de braços abertos, sorrindo, vieram
cumprimentar a mim e ao cavalo.
Finalmente, encerrada a nossa aventura,
levei-o ao pasto para junto de sua namorada, e concedi-lhe dez dias de merecido
descanso, em plena liberdade.
Em seguida, comi a primeira refeição do
dia. Cansado, deitei-me na minha saudosa rede. Dormi profundamente e sonhei que
me levantava, pela manhã, e via na frente da casa a estátua enorme de um
cavalo, cópia fiel do Alazão, esculpida em mármore da sua cor, sem dúvida pelas
mãos de artistas celestiais, para servir de símbolo e orgulho a todos os
representantes da sua raça.
O Alazão era um cavalo inteligente,
brioso, robusto, e heroico.
Espero reencontrá-lo na Eternidade.
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